UOL


São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Por meio de seu protagonista, um autor de textos por encomenda, romance combina fantasmagoria e ficção

Chico tem uma história e sabe como contá-la

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

"Ghost-writer " (expressão inglesa que se traduziria literalmente por "escritor fantasma") é alguém que escreve textos para outros ou, mais precisamente, para serem atribuídos a outros. A categoria abarca desde quem ajuda atrizes semi-analfabetas a escreverem suas memórias até os profissionais influentes que redigem discursos presidenciais.
Em certos ramos literários essa prática nada tem de incomum: autores de "best-sellers" internacionais -e isso já ocorria nos tempos de Alexandre Dumas- delegam frequentemente a auxiliares parte ou mesmo o grosso de suas tarefas. Pelo menos um Nobel literário relativamente recente começou a ser acusado, após a morte, de ter subcontratado muitos de seus livros.
As correntes teóricas "up to date" põem em dúvida a própria noção de autoria. Num nível mais mundano, porém, nem que seja apenas por questões de direito autoral, convém saber quem escreveu o quê. Ademais, se a crítica literária chega a ser divertida, é porque às vezes persegue detetivescamente temas que se transformaram ao passarem das mãos de um escritor para o seguinte, personagens que, disfarçadas ou não, reaparecem entre capas inesperadas.
O protagonista de "Budapeste" é um "ghost-writer", e o romance consiste numa combinação de fantasmagoria, de ficção sobre a ficção e da interpenetração do ficcional e do real.
Os precedentes do que o escritor faz, ou seja, suas influências seriam facilmente alinhaváveis, porém fazê-lo é menos importante do que ressaltar o principal traço estilístico de sua prosa: a despretensiosidade. A sobriedade de sua escrita permite à história desenrolar-se como que por si só, algo raro nesses dias de rebuscamentos afetados que encobrem a falta do que contar. Chico Buarque não precisa de tais recursos pois tem uma história a contar e sabe fazê-lo.
José Costa, um talentoso autor anônimo carioca, vive em paz e feliz com seu trabalho por duas razões: primeiro, por saber que o que escreve é bom; e, segundo, por timidez.
Ele se orgulha de suas obras e gosta de vê-las apreciadas, elogiadas, sem fazer questão de ser publicamente reconhecido. Há, provavelmente, pessoas assim, e seu complemento natural são aquelas que, desinteressadas do que (não) fazem, apreciam de fato a fama. Os problemas do personagem principiam quando ele escreve algo muito melhor do que o esperado e, aí, bom, não vou obviamente contar a história.

Língua complexa
Alguns detalhes, no entanto, podem dar uma idéia da trama sem trair suas surpresas. José Costa participa de quando em quando de congressos internacionais de escritores anônimos e, numa dessas viagens, passa por Budapeste, a capital da Hungria, formada por duas cidades, Buda e Peste, cada qual numa das margens do Danúbio -que, aliás, não é azul. Dotado para línguas, sua curiosidade é despertada pelo húngaro, idioma complexo, distante de quase todos os outros falados na Europa.
Às complicações conjugais e profissionais que haviam colocado em questão a tranquilidade com que ele conciliava publicidade e anonimato associam-se logo os empecilhos encontrados numa língua e num país estrangeiros. Acrescente-se à trama um triângulo amoroso, que se converte em quadrilátero aberto a novos ângulos, e o que se obtém? Uma novela filosófica um pouco à maneira do século 18 na qual, se bem que não faltem momentos angustiantes, o tom que prepondera é o cômico.

Metáfora
Não obstante palavras húngaras e recantos de Budapeste aparecerem aqui e ali no livro, a Hungria e sua língua cumprem um papel sobretudo metafórico, representando algo de estranho e remoto. Para todos os efeitos, o título do romance poderia ser Varsóvia, Praga, Kiev.
Tanto mais interessante, portanto, é constatar que o novo romance de Chico Buarque possui um quê de peculiarmente húngaro, porque seja seu tema, seja seu clima o aproximam de prosadores magiares da primeira metade do século 20, como Gyula Krúdy e Dezsö Kosztolányi.
Se Chico Buarque os conhece e se abriu à sua influência, então "Budapeste" demonstra quão proveitosa é a confluência de duas tradições distintas. Caso não os conheça, tal parentesco acidental adiciona à narrativa uma camada de mistério que a torna ainda mais irônica e divertida.


Budapeste
    
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (174 págs.)



Texto Anterior: Autor cruza abismo e chega ao outro lado
Próximo Texto: "O biografado nos captura a alma", diz Ruy Castro
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.