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Por meio de seu protagonista, um autor de textos por encomenda, romance combina fantasmagoria e ficção
Chico tem uma história e sabe como contá-la
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
"Ghost-writer " (expressão inglesa que se traduziria literalmente por "escritor fantasma") é alguém que escreve textos para outros ou, mais precisamente, para serem atribuídos a
outros. A categoria abarca desde
quem ajuda atrizes semi-analfabetas a escreverem suas memórias até os profissionais influentes
que redigem discursos presidenciais.
Em certos ramos literários essa
prática nada tem de incomum:
autores de "best-sellers" internacionais -e isso já ocorria nos
tempos de Alexandre Dumas-
delegam frequentemente a auxiliares parte ou mesmo o grosso de
suas tarefas. Pelo menos um Nobel literário relativamente recente
começou a ser acusado, após a
morte, de ter subcontratado muitos de seus livros.
As correntes teóricas "up to date" põem em dúvida a própria noção de autoria. Num nível mais
mundano, porém, nem que seja
apenas por questões de direito autoral, convém saber quem escreveu o quê. Ademais, se a crítica literária chega a ser divertida, é
porque às vezes persegue detetivescamente temas que se transformaram ao passarem das mãos
de um escritor para o seguinte,
personagens que, disfarçadas ou
não, reaparecem entre capas inesperadas.
O protagonista de "Budapeste"
é um "ghost-writer", e o romance
consiste numa combinação de
fantasmagoria, de ficção sobre a
ficção e da interpenetração do ficcional e do real.
Os precedentes do que o escritor faz, ou seja, suas influências
seriam facilmente alinhaváveis,
porém fazê-lo é menos importante do que ressaltar o principal traço estilístico de sua prosa: a despretensiosidade. A sobriedade de
sua escrita permite à história desenrolar-se como que por si só, algo raro nesses dias de rebuscamentos afetados que encobrem a
falta do que contar. Chico Buarque não precisa de tais recursos
pois tem uma história a contar e
sabe fazê-lo.
José Costa, um talentoso autor
anônimo carioca, vive em paz e
feliz com seu trabalho por duas
razões: primeiro, por saber que o
que escreve é bom; e, segundo,
por timidez.
Ele se orgulha de suas obras e
gosta de vê-las apreciadas, elogiadas, sem fazer questão de ser publicamente reconhecido. Há, provavelmente, pessoas assim, e seu
complemento natural são aquelas
que, desinteressadas do que (não)
fazem, apreciam de fato a fama.
Os problemas do personagem
principiam quando ele escreve algo muito melhor do que o esperado e, aí, bom, não vou obviamente
contar a história.
Língua complexa
Alguns detalhes, no entanto, podem dar uma idéia da trama sem
trair suas surpresas. José Costa
participa de quando em quando
de congressos internacionais de
escritores anônimos e, numa dessas viagens, passa por Budapeste,
a capital da Hungria, formada por
duas cidades, Buda e Peste, cada
qual numa das margens do Danúbio -que, aliás, não é azul. Dotado para línguas, sua curiosidade é
despertada pelo húngaro, idioma
complexo, distante de quase todos os outros falados na Europa.
Às complicações conjugais e
profissionais que haviam colocado em questão a tranquilidade
com que ele conciliava publicidade e anonimato associam-se logo
os empecilhos encontrados numa
língua e num país estrangeiros.
Acrescente-se à trama um triângulo amoroso, que se converte em
quadrilátero aberto a novos ângulos, e o que se obtém? Uma novela
filosófica um pouco à maneira do
século 18 na qual, se bem que não
faltem momentos angustiantes, o
tom que prepondera é o cômico.
Metáfora
Não obstante palavras húngaras
e recantos de Budapeste aparecerem aqui e ali no livro, a Hungria e
sua língua cumprem um papel sobretudo metafórico, representando algo de estranho e remoto. Para todos os efeitos, o título do romance poderia ser Varsóvia, Praga, Kiev.
Tanto mais interessante, portanto, é constatar que o novo romance de Chico Buarque possui
um quê de peculiarmente húngaro, porque seja seu tema, seja seu
clima o aproximam de prosadores magiares da primeira metade
do século 20, como Gyula Krúdy e
Dezsö Kosztolányi.
Se Chico Buarque os conhece e
se abriu à sua influência, então
"Budapeste" demonstra quão
proveitosa é a confluência de duas
tradições distintas. Caso não os
conheça, tal parentesco acidental
adiciona à narrativa uma camada
de mistério que a torna ainda
mais irônica e divertida.
Budapeste
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (174 págs.)
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