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Saudade do "imperialismo norte-americano"
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
A visita de Bill Clinton me
trouxe uma nostalgia brutal:
saudades do "imperialismo
norte-americano". Toda a minha juventude foi assombrada
por esse mal político.
Eu tinha 18 anos e vivia na
UNE, ali na praia do Flamengo, ao lado do botequim Cabanas, onde, com o Carlos Estevam e o Vianinha, fundávamos o CPC (Centro Popular de
Cultura), saindo pelo Brasil
para "conscientizar o povo
alienado, a classe média conformista e os operários desinformados da sua condição de
explorados nesta sociedade do
Terceiro Mundo, com uma
classe dominante sem projeto
histórico e títere do imperialismo norte-americano".
Falávamos assim em 1963.
Havia um chefe do bom partidão Comunista que me fascinava. Ele era o camarada Jacques, aliás Tadeu, aliás,
sei-lá-o-quê.
Ninguém sabia o nome dele
direito, era judeu, triste e tinha
o nariz cor-de-rosa em forma
de couve-flor e usava meias
brancas soquetes com sapatos
pretos "tanque" Polar, de onde sobravam os gordos tornozelos. Sempre fui meio louco e
ficava olhando esses detalhes,
pensando: "Como ele pode ser
tão heróico com essas meias
brancas e esses sapatos?"
Para o camarada Jacques,
tudo era a culpa do imperialismo. "Qual é a 'contradição
principal' do Brasil?", perguntava. "É o imperialismo norte-americano!", respondíamos
como num colégio. Chamava-se a isso "dar assistência à
base".
Um dia, eu estava num apartamento ("aparelho") conjugado em Copacabana, onde
havia um sofá-cama velho.
Diante de mim, a bela companheira Rosa. Esperávamos os
outros camaradas, para mais
uma reunião da "base". Ninguém chegava. De repente, eu
estava em cima da Rosa, beijando-a, traindo a revolução
num infinito prazer culposo.
Bateram na porta. Em pânico,
nos arrumamos. Entrou o chefe de nariz cor-de-rosa.
Eu olhava Rosa. A culpa ali
não era do imperialismo. Era
nossa. No sofá-cama, havia
uma mancha úmida. Ninguém
viu. Ao lado da mancha, saía
um chumaço do estofamento.
Naquela mancha úmida havia
uma vida nova pra mim (eu
era quase virgem). No chumaço de paina, eu vi que alguma
coisa ia fracassar na revolução
brasileira. Como salvar o país
com um chefe de nariz
cor-de-rosa e um exército de
sofás esfarrapados?
Tudo era o imperialismo.
Nossa alma ibérica rançosa,
nosso mal endógeno de patrimonialistas, nada disso interessava. O Brasil era um país
puro, e toda a culpa de nosso
atraso era só do "imperialismo norte-americano", a contradição principal.
Na época, o perigo ianque
era um mal geral que nos
ameaçava e absolvia ao mesmo tempo. Enquanto houvesse
o "imperialismo", estava tudo explicado.
E eu ficava olhando o nariz
cor-de-rosa de couve-flor do
camarada Jacques, enquanto
sonhávamos com a grande revolução mágica que estávamos
fazendo com a ajuda do governo Jango (até para fazer revolução tínhamos de contar com
apoio do Estado).
Em 64, quando caiu tudo,
com a chegada dos tanques de
guerra, com o fogo da UNE,
com todas as ilusões derrubadas, o pobre camarada nos
reuniu e murmurou trêmulas
palavras como "subestimamos o imperialismo", "hesitação da militância".
Seu nariz estava branco de
tristeza. O nosso camarada
Jacques caiu na clandestinidade. Anos depois, eu o vi passando na rua, oculto atrás de
uma plástica, com o nariz operado. Naquele nariz falso, artificial, eu vi a chegada da
pós-modernidade, o prenúncio
da queda do muro de Berlim.
Que saudades tenho desse
tempo nacionalista, em que tudo era tão claro, quando os
operário eram figuras alegóricas, de dorsos fortes, com martelos na mão. Eu e meus colegas fazíamos o jornal "O Metropolitano" e ficávamos até
altas horas na oficina vendo os
operários a fechar o jornal no
chumbo. Nós olhávamos fascinados aqueles homens, cobrindo-os de perguntas e gentilezas. E os operários até estranhavam nosso forte amor.
"Serão viados?", pensava o
povo. Não; éramos comunistas.
A miséria era irresistível. Como não cair na sedução revolucionária, com Che dirigindo
Cuba, com jovens beatniks políticos?
Eu me lembro de um amigo
me falando: "O marxismo supera a morte!" "Como?", dizia eu espantado. "Claro...
Uma vez dissolvido no social, o
indivíduo perde a ilusão pequeno-burguesa de ser uma
pessoa. Ele só existe como espécie, como ser social. E aí, não
morre. O marxista não morre." E eu, fascinado, sonhava
com a vida eterna.
Lembro-me dessas coisas
quando vejo a chegada de
Clinton. Vejo que americano
não muda. Não aprenderam
nada e não esqueceram nada.
A segurança de sua viagem,
com as toneladas de equipamentos de guerra, parece a metáfora de uma invasão dos
"marines".
Por outro lado, fizeram um
folheto com uma análise magistral dos nossos hábitos corruptos "endêmicos" (que palavra perfeita e "weberiana"). Só não disseram que
grande parte de nossa corrupção veio dos cofres americanos,
comprando empresários e políticos que hoje posam de nacionalistas ferventes.
A agenda de Clinton, como
sempre, posa de "cultural e
educacional" para criar um
clima de cooperação bilateral
que, no duro, esconde a única
verdade: só interessa a eles
vender produtos aos "emergentes" e detonar o Mercosul.
Mais uma vez, os babacas
daqui se deslumbrarão com os
sorrisos diplomáticos e se esquecerão que nunca na história tivemos uma atitude cooperativa dos Estados Unidos e
que o dinheiro americano só
pintou aqui para eleger políticos de direita no pré-64 e financiar o golpe.
No pós-Guerra Fria, só tiveram olhos para o Leste Europeu. Ou seja, disfarçados de
"globalizados", continuamos
ainda sob a política do "big
stick" (pau grande). Por isso,
a visita de Clinton me evocou
também a grande bandeira negra na porta da UNE, quando
da visita de Ike (Eisenhower),
em que estava escrito "We like
Fidel".
Assim, com sua chegada matei minhas saudades do velho
"imperialismo norte-americano" e me lembrei do pobre e
querido camarada de nariz
cor-de-rosa perguntando:
"Qual é a 'contradição principal'?".
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