São Paulo, terça, 14 de outubro de 1997.




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Saudade do "imperialismo norte-americano"

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

A visita de Bill Clinton me trouxe uma nostalgia brutal: saudades do "imperialismo norte-americano". Toda a minha juventude foi assombrada por esse mal político.
Eu tinha 18 anos e vivia na UNE, ali na praia do Flamengo, ao lado do botequim Cabanas, onde, com o Carlos Estevam e o Vianinha, fundávamos o CPC (Centro Popular de Cultura), saindo pelo Brasil para "conscientizar o povo alienado, a classe média conformista e os operários desinformados da sua condição de explorados nesta sociedade do Terceiro Mundo, com uma classe dominante sem projeto histórico e títere do imperialismo norte-americano".
Falávamos assim em 1963. Havia um chefe do bom partidão Comunista que me fascinava. Ele era o camarada Jacques, aliás Tadeu, aliás, sei-lá-o-quê.
Ninguém sabia o nome dele direito, era judeu, triste e tinha o nariz cor-de-rosa em forma de couve-flor e usava meias brancas soquetes com sapatos pretos "tanque" Polar, de onde sobravam os gordos tornozelos. Sempre fui meio louco e ficava olhando esses detalhes, pensando: "Como ele pode ser tão heróico com essas meias brancas e esses sapatos?"
Para o camarada Jacques, tudo era a culpa do imperialismo. "Qual é a 'contradição principal' do Brasil?", perguntava. "É o imperialismo norte-americano!", respondíamos como num colégio. Chamava-se a isso "dar assistência à base".
Um dia, eu estava num apartamento ("aparelho") conjugado em Copacabana, onde havia um sofá-cama velho. Diante de mim, a bela companheira Rosa. Esperávamos os outros camaradas, para mais uma reunião da "base". Ninguém chegava. De repente, eu estava em cima da Rosa, beijando-a, traindo a revolução num infinito prazer culposo. Bateram na porta. Em pânico, nos arrumamos. Entrou o chefe de nariz cor-de-rosa.
Eu olhava Rosa. A culpa ali não era do imperialismo. Era nossa. No sofá-cama, havia uma mancha úmida. Ninguém viu. Ao lado da mancha, saía um chumaço do estofamento. Naquela mancha úmida havia uma vida nova pra mim (eu era quase virgem). No chumaço de paina, eu vi que alguma coisa ia fracassar na revolução brasileira. Como salvar o país com um chefe de nariz cor-de-rosa e um exército de sofás esfarrapados?
Tudo era o imperialismo. Nossa alma ibérica rançosa, nosso mal endógeno de patrimonialistas, nada disso interessava. O Brasil era um país puro, e toda a culpa de nosso atraso era só do "imperialismo norte-americano", a contradição principal.
Na época, o perigo ianque era um mal geral que nos ameaçava e absolvia ao mesmo tempo. Enquanto houvesse o "imperialismo", estava tudo explicado.
E eu ficava olhando o nariz cor-de-rosa de couve-flor do camarada Jacques, enquanto sonhávamos com a grande revolução mágica que estávamos fazendo com a ajuda do governo Jango (até para fazer revolução tínhamos de contar com apoio do Estado).
Em 64, quando caiu tudo, com a chegada dos tanques de guerra, com o fogo da UNE, com todas as ilusões derrubadas, o pobre camarada nos reuniu e murmurou trêmulas palavras como "subestimamos o imperialismo", "hesitação da militância".
Seu nariz estava branco de tristeza. O nosso camarada Jacques caiu na clandestinidade. Anos depois, eu o vi passando na rua, oculto atrás de uma plástica, com o nariz operado. Naquele nariz falso, artificial, eu vi a chegada da pós-modernidade, o prenúncio da queda do muro de Berlim.
Que saudades tenho desse tempo nacionalista, em que tudo era tão claro, quando os operário eram figuras alegóricas, de dorsos fortes, com martelos na mão. Eu e meus colegas fazíamos o jornal "O Metropolitano" e ficávamos até altas horas na oficina vendo os operários a fechar o jornal no chumbo. Nós olhávamos fascinados aqueles homens, cobrindo-os de perguntas e gentilezas. E os operários até estranhavam nosso forte amor. "Serão viados?", pensava o povo. Não; éramos comunistas.
A miséria era irresistível. Como não cair na sedução revolucionária, com Che dirigindo Cuba, com jovens beatniks políticos?
Eu me lembro de um amigo me falando: "O marxismo supera a morte!" "Como?", dizia eu espantado. "Claro... Uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão pequeno-burguesa de ser uma pessoa. Ele só existe como espécie, como ser social. E aí, não morre. O marxista não morre." E eu, fascinado, sonhava com a vida eterna.
Lembro-me dessas coisas quando vejo a chegada de Clinton. Vejo que americano não muda. Não aprenderam nada e não esqueceram nada. A segurança de sua viagem, com as toneladas de equipamentos de guerra, parece a metáfora de uma invasão dos "marines".
Por outro lado, fizeram um folheto com uma análise magistral dos nossos hábitos corruptos "endêmicos" (que palavra perfeita e "weberiana"). Só não disseram que grande parte de nossa corrupção veio dos cofres americanos, comprando empresários e políticos que hoje posam de nacionalistas ferventes.
A agenda de Clinton, como sempre, posa de "cultural e educacional" para criar um clima de cooperação bilateral que, no duro, esconde a única verdade: só interessa a eles vender produtos aos "emergentes" e detonar o Mercosul.
Mais uma vez, os babacas daqui se deslumbrarão com os sorrisos diplomáticos e se esquecerão que nunca na história tivemos uma atitude cooperativa dos Estados Unidos e que o dinheiro americano só pintou aqui para eleger políticos de direita no pré-64 e financiar o golpe.
No pós-Guerra Fria, só tiveram olhos para o Leste Europeu. Ou seja, disfarçados de "globalizados", continuamos ainda sob a política do "big stick" (pau grande). Por isso, a visita de Clinton me evocou também a grande bandeira negra na porta da UNE, quando da visita de Ike (Eisenhower), em que estava escrito "We like Fidel".
Assim, com sua chegada matei minhas saudades do velho "imperialismo norte-americano" e me lembrei do pobre e querido camarada de nariz cor-de-rosa perguntando: "Qual é a 'contradição principal'?".



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