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CARLOS HEITOR CONY
Noções de Ary Barroso: o banho de ervas (2)
O pianista magro, tão magro como seu amigo e parceiro Lamartine Babo, óculos de
fundo de garrafa, estudante de direito nas horas vagas, tentava a
vida como podia, mas pouco podia. Tocava piano onde houvesse
piano e cachê. Impetuoso já, os
dedos não obedeciam à técnica
tradicional, apreendida de sua tia
materna. Uma distração do empresário circunstancial, e ele já
não estava interpretando, começava a compor. Chegou a gravar
algumas músicas -uma delas,
por sinal, figuraria entre seus melhores sambas, "Vamos Deixar de
Intimidade", cantada por Mário
Reis, colega de faculdade e um
dos intérpretes mais frequentes de
sua obra. O sucesso era certo, mas
estava longe ainda.
Um dia -foi o próprio Ary
quem me contou, ali no Leme, ao
pé do chope, com Luís Jatobá e
Fernando Lobo ao lado-, um
sujeito apareceu com uns versos:
- Moço, ouvi dizer que o senhor toca piano...
- Toco, sim, senhor.
- Sabe compor?
- Acho que sim.
- Podia musicar esses versos
aqui? Eu pago pouco, mas pago.
Ary leu os versos, não entendeu
nada, mas tacou música assim
mesmo. Cantarolou para o desconhecido, que gostou e aprovou. Só
então disse que aquilo seria o hino de uma dissidência de outra
dissidência de um terceiro dissidente da macumba. Ary não gostou, mas o mal estava feito.
Daí para cá, a vida piorou. Perdeu contratos, adoeceu, suspendeu as aulas de direito, "pra baixo todo santo ajuda, pra cima a
coisa toda muda" -cantaria ele
num samba gravado mais tarde
por Carmen Miranda. Até que
um dia recebeu a carta anônima:
em vários terreiros da cidade e do
resto do Brasil, faziam trabalhos
contra o autor daquele hino. Ele
estava marcado para comer todo
o pão que nem o diabo amassaria. Além da ameaça, havia uma
espécie de conselho: a sorte poderia mudar se Ary se submetesse a
um ritual complicado, em Niterói, tomar um banho de ervas especialíssimas, complicadíssimas,
difíceis de encontrar no mercado,
uma velha mãe-de-santo era eficaz para a descarga que o livraria
da má sorte.
Ary rasgou a carta e continuou
insistindo. Tocava por aí -mas
compor, até isso estava difícil, os
dedos não mais sabiam improvisar, não tinha idéias. Limitava-se
a executar Ernesto Nazareth e Sinhô, seus autores preferidos, além
daquele Chopin básico que todos
pediam. Nos cinemas, acompanhava ao piano o galope do cavalo dos mocinhos, os tombos de
Carlitos, as caras e bocas de Mary
Pickford. Andava pelas ruas de
cabeça baixa, perseguindo uma
melodia que não vinha, um tema
que não existia.
Um dia decidiu. Tomou a barca, saltou em Niterói, de boca em
boca localizou a velha.
- O senhor tire a roupa!
Ary era devoto de Nossa Senhora, de quase todas as Nossas Senhoras que conhecia, católico mineiro, baiano postiço que acreditava no Senhor do Bonfim, nunca
se tinha metido numa fria dessas,
embora o banho de descarga não
fosse frio, fosse quente, escaldando. Havia ervas e cheiros confusos
na enorme tina que a velha apontou:
- Entre aí!
Nu, esquálido como um prisioneiro de campo de concentração,
Ary entrou, como um peru em vinha-d'alho, foi regado com uma
cuia que na realidade era a metade da lata redonda de um queijo
Palmira. A velha rezou, disse palavras esparsas numa língua incompreensível que parecia inventada na hora e para a circunstância, suplementou o caldo fervente
com outras porções com cheiros
estranhíssimos, até que liberou a
vítima:
- Acabou. O mal já saiu.
Ary saiu ressabiado, reparou
que a água, que era mais ou menos clara, estava escura, pastosa,
cheia de miasmas e coisas ruins
que haviam saído dele. Quis pagar, a velha não aceitou um tostão.
- Olha como está a água! Nunca vi ficar assim. O doutor estava
mesmo carregado, foi coisa forte
que fizeram contra o doutor.
Ary tomou outro banho, de um
improvisado chuveiro que era
apenas um cano sem chuveiro,
vestiu-se, mesmo sem pedir, a velha o abençoou.
- Vai, meu filho, tudo ficará
bem agora.
Ary pegou a barca de volta ao
Rio, saltou ali na praça Quinze.
Em frente ao antigo refúgio de
bondes havia um aglomerado.
Ary chegou perto e soube: uma
mulher havia faltado com o respeito com outras senhoras que esperavam o bonde. O povo queria
linchar a vigarista. Ouviu o moleque gritar a seu lado:
- Dá nela! Dá nela!
Saiu dali com as mãos nos bolsos, tinha a tarde pela frente, era
necessário ganhar o cachê e o dia.
Andava cabisbaixo, chutando o
ar, quando, de repente, a melodia
começou a vir. Ary não fez caso,
enxotou-a, mas ela se obstinava
em sua cabeça, ritmando seus dedos de encontro com as pernas, dá
nela, dá nela.
Quando chegou à Casa Artur
Napoleão, na rua do Ouvidor, onde trabalhava como pianista que
executava partituras para os fregueses, o piano já estava aberto.
Nenhum cliente lhe pediu nem
havia partitura à sua frente. Os
dedos foram rápidos para as teclas, a mão esquerda -sua fabulosa mão esquerda- marcando o
compasso da marchinha; o Carnaval estava próximo.
O sucesso tocou-lhe o ombro e
nunca mais o abandonou.
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