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São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Noções de Ary Barroso: o banho de ervas (2)

O pianista magro, tão magro como seu amigo e parceiro Lamartine Babo, óculos de fundo de garrafa, estudante de direito nas horas vagas, tentava a vida como podia, mas pouco podia. Tocava piano onde houvesse piano e cachê. Impetuoso já, os dedos não obedeciam à técnica tradicional, apreendida de sua tia materna. Uma distração do empresário circunstancial, e ele já não estava interpretando, começava a compor. Chegou a gravar algumas músicas -uma delas, por sinal, figuraria entre seus melhores sambas, "Vamos Deixar de Intimidade", cantada por Mário Reis, colega de faculdade e um dos intérpretes mais frequentes de sua obra. O sucesso era certo, mas estava longe ainda.
Um dia -foi o próprio Ary quem me contou, ali no Leme, ao pé do chope, com Luís Jatobá e Fernando Lobo ao lado-, um sujeito apareceu com uns versos:
- Moço, ouvi dizer que o senhor toca piano...
- Toco, sim, senhor.
- Sabe compor?
- Acho que sim.
- Podia musicar esses versos aqui? Eu pago pouco, mas pago.
Ary leu os versos, não entendeu nada, mas tacou música assim mesmo. Cantarolou para o desconhecido, que gostou e aprovou. Só então disse que aquilo seria o hino de uma dissidência de outra dissidência de um terceiro dissidente da macumba. Ary não gostou, mas o mal estava feito.
Daí para cá, a vida piorou. Perdeu contratos, adoeceu, suspendeu as aulas de direito, "pra baixo todo santo ajuda, pra cima a coisa toda muda" -cantaria ele num samba gravado mais tarde por Carmen Miranda. Até que um dia recebeu a carta anônima: em vários terreiros da cidade e do resto do Brasil, faziam trabalhos contra o autor daquele hino. Ele estava marcado para comer todo o pão que nem o diabo amassaria. Além da ameaça, havia uma espécie de conselho: a sorte poderia mudar se Ary se submetesse a um ritual complicado, em Niterói, tomar um banho de ervas especialíssimas, complicadíssimas, difíceis de encontrar no mercado, uma velha mãe-de-santo era eficaz para a descarga que o livraria da má sorte.
Ary rasgou a carta e continuou insistindo. Tocava por aí -mas compor, até isso estava difícil, os dedos não mais sabiam improvisar, não tinha idéias. Limitava-se a executar Ernesto Nazareth e Sinhô, seus autores preferidos, além daquele Chopin básico que todos pediam. Nos cinemas, acompanhava ao piano o galope do cavalo dos mocinhos, os tombos de Carlitos, as caras e bocas de Mary Pickford. Andava pelas ruas de cabeça baixa, perseguindo uma melodia que não vinha, um tema que não existia.
Um dia decidiu. Tomou a barca, saltou em Niterói, de boca em boca localizou a velha.
- O senhor tire a roupa!
Ary era devoto de Nossa Senhora, de quase todas as Nossas Senhoras que conhecia, católico mineiro, baiano postiço que acreditava no Senhor do Bonfim, nunca se tinha metido numa fria dessas, embora o banho de descarga não fosse frio, fosse quente, escaldando. Havia ervas e cheiros confusos na enorme tina que a velha apontou:
- Entre aí!
Nu, esquálido como um prisioneiro de campo de concentração, Ary entrou, como um peru em vinha-d'alho, foi regado com uma cuia que na realidade era a metade da lata redonda de um queijo Palmira. A velha rezou, disse palavras esparsas numa língua incompreensível que parecia inventada na hora e para a circunstância, suplementou o caldo fervente com outras porções com cheiros estranhíssimos, até que liberou a vítima:
- Acabou. O mal já saiu.
Ary saiu ressabiado, reparou que a água, que era mais ou menos clara, estava escura, pastosa, cheia de miasmas e coisas ruins que haviam saído dele. Quis pagar, a velha não aceitou um tostão.
- Olha como está a água! Nunca vi ficar assim. O doutor estava mesmo carregado, foi coisa forte que fizeram contra o doutor.
Ary tomou outro banho, de um improvisado chuveiro que era apenas um cano sem chuveiro, vestiu-se, mesmo sem pedir, a velha o abençoou.
- Vai, meu filho, tudo ficará bem agora.
Ary pegou a barca de volta ao Rio, saltou ali na praça Quinze. Em frente ao antigo refúgio de bondes havia um aglomerado. Ary chegou perto e soube: uma mulher havia faltado com o respeito com outras senhoras que esperavam o bonde. O povo queria linchar a vigarista. Ouviu o moleque gritar a seu lado:
- Dá nela! Dá nela!
Saiu dali com as mãos nos bolsos, tinha a tarde pela frente, era necessário ganhar o cachê e o dia. Andava cabisbaixo, chutando o ar, quando, de repente, a melodia começou a vir. Ary não fez caso, enxotou-a, mas ela se obstinava em sua cabeça, ritmando seus dedos de encontro com as pernas, dá nela, dá nela.
Quando chegou à Casa Artur Napoleão, na rua do Ouvidor, onde trabalhava como pianista que executava partituras para os fregueses, o piano já estava aberto. Nenhum cliente lhe pediu nem havia partitura à sua frente. Os dedos foram rápidos para as teclas, a mão esquerda -sua fabulosa mão esquerda- marcando o compasso da marchinha; o Carnaval estava próximo.
O sucesso tocou-lhe o ombro e nunca mais o abandonou.


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