São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONCERTO/CRÍTICA

"War Requiem" nos faz ouvir a pior das guerras sem um estrondo



ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS



E xistem limites para a representação? Cercados de brutalidade, expostos a horrores cotidianamente, será que ainda é possível se chocar com a violência homeopática de uma imagem, uma peça, um poema? Que resposta insuspeitada veio sob forma de música no "War Requiem", de Britten (1913-76), interpretado pela Osesp anteontem, na Sala São Paulo.
O "Requiem" é de 1961. Foi composto para a reinauguração da catedral de Coventry, bombardeada durante a Segunda Guerra. Britten, um pacifista militante durante toda a vida, intercala os textos litúrgicos com poemas de Wilfrid Owen (1893-1918), outro pacifista, morto nos campos de batalha da Primeira Guerra.
A combinação de textos sugere alternâncias não só musicais, mas de sentido; e a música de Britten lê uns e outros como uma espécie de testemunha: sobressaltada, empática, de ouvidos abertos para o que não se pode não escutar.
Não há, no repertório moderno, quase nada que se compare à força dessas linhas soltas e corais dissonantes, controlados por esse pulso tão lento, quase alucinatório, que nos faz escutar, sem um estrondo, a pior das guerras.
Manter o pulso, aqui, é o que há de mais difícil; e John Neschling regeu como um predestinado. Não é possível reger essa música sem ter, como ele, uma empatia funda com seu sentido mais sombrio e sem fundo. Buracos se abrem na textura, linhas se suspendem num estado de total fragilidade, os sinos dobram secos, sem nostalgia. As crianças (muito bem preparadas por Teruo Yoshida) cantam do lado de lá da platéia e do lado de lá da vida. O coro adulto (idem: Naomi Munakata) responde, para além da comoção.
Não é possível tocar essa música sem que se entenda assim, por dentro, o que é esse outro tempo, esse outro entendimento, que Neschling e a Osesp fizeram acontecer no mundo por 80 minutos.
É música adulta, que exige músicos adultos e uma platéia adulta. E cantores: Claudia Riccitelli fazendo chorar no "Lacrimosa", Barry Banks cantando o "Agnus Dei" com um corte incrível de tom e palavra e o barítono Garry Magee ombro a ombro com ele na dramática cena final, o encontro dos inimigos na trincheira, traduzindo o "descansa em paz" latino para o "Let us Sleep Now", de Owen, com uma convicção que ultrapassa a tecnicalidade.
Não existem, talvez, limites para a representação; mas existem limites para a empatia. O excesso cancela. Essa música resiste: ela se esvazia de quase tudo, exceto o essencial. Fica difícil, depois, abrir os olhos, levantar o rosto, voltar para a miséria do mundo sempiternamente errado ao redor.


Avaliação:     


Texto Anterior: Música: "Cavaleiro" Donato recebe Prêmio Shell
Próximo Texto: Política cultural: Funarte abre mão de acervo para gravadora
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.