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CONCERTO/CRÍTICA
"War Requiem" nos faz ouvir a pior das guerras sem um estrondo
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
E xistem limites para a representação? Cercados de brutalidade, expostos a horrores cotidianamente, será que ainda é possível se chocar com a violência homeopática de uma imagem, uma
peça, um poema? Que resposta
insuspeitada veio sob forma de
música no "War Requiem", de
Britten (1913-76), interpretado
pela Osesp anteontem, na Sala
São Paulo.
O "Requiem" é de 1961. Foi
composto para a reinauguração
da catedral de Coventry, bombardeada durante a Segunda Guerra.
Britten, um pacifista militante durante toda a vida, intercala os textos litúrgicos com poemas de Wilfrid Owen (1893-1918), outro pacifista, morto nos campos de batalha da Primeira Guerra.
A combinação de textos sugere
alternâncias não só musicais, mas
de sentido; e a música de Britten lê
uns e outros como uma espécie de
testemunha: sobressaltada, empática, de ouvidos abertos para o
que não se pode não escutar.
Não há, no repertório moderno,
quase nada que se compare à força dessas linhas soltas e corais dissonantes, controlados por esse
pulso tão lento, quase alucinatório, que nos faz escutar, sem um
estrondo, a pior das guerras.
Manter o pulso, aqui, é o que há
de mais difícil; e John Neschling
regeu como um predestinado.
Não é possível reger essa música
sem ter, como ele, uma empatia
funda com seu sentido mais sombrio e sem fundo. Buracos se
abrem na textura, linhas se suspendem num estado de total fragilidade, os sinos dobram secos,
sem nostalgia. As crianças (muito
bem preparadas por Teruo Yoshida) cantam do lado de lá da platéia e do lado de lá da vida. O coro
adulto (idem: Naomi Munakata)
responde, para além da comoção.
Não é possível tocar essa música
sem que se entenda assim, por
dentro, o que é esse outro tempo,
esse outro entendimento, que
Neschling e a Osesp fizeram acontecer no mundo por 80 minutos.
É música adulta, que exige músicos adultos e uma platéia adulta.
E cantores: Claudia Riccitelli fazendo chorar no "Lacrimosa",
Barry Banks cantando o "Agnus
Dei" com um corte incrível de
tom e palavra e o barítono Garry
Magee ombro a ombro com ele na
dramática cena final, o encontro
dos inimigos na trincheira, traduzindo o "descansa em paz" latino
para o "Let us Sleep Now", de
Owen, com uma convicção que
ultrapassa a tecnicalidade.
Não existem, talvez, limites para
a representação; mas existem limites para a empatia. O excesso
cancela. Essa música resiste: ela se
esvazia de quase tudo, exceto o essencial. Fica difícil, depois, abrir
os olhos, levantar o rosto, voltar
para a miséria do mundo sempiternamente errado ao redor.
Avaliação:
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