São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2001

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CRÍTICA

O invisível pela ótica pública

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O projeto original de Chico Teixeira, diretor do documentário "Carrego Comigo", era fazer um filme em que os gêmeos fossem vistos pelo viés do espetáculo. A maioria dos entrevistados tem algum tipo de relação com a exposição pública.
Isso vai dos dublês de cinema Stanley e Ricardo às duplas de cantoras Célia e Celma ou Pepê e Neném; dos modelos de revistas eróticas Márfio e Fariomar às misses Ana Cristina e Elizabeth (primeiro e segundo lugar no concurso Miss Guanabara de 66, decidido no cara ou coroa); dos transformistas Doly e Doly aos religiosos frei Clemente e padre Henrique, cuja missa, celebrada a quatro mãos, tem tanto de apoteose teatral quanto o show das drag queens, cujo paralelo é enfatizado pela montagem.
Vem daí a inteligência e a sensibilidade do filme: ao mostrá-los pela ótica da exposição, o longa acaba destacando o que não é visível. Mostra os gêmeos como a representação aguda de uma falta que é comum a todo o mundo.
Não é à toa que certos grupos indígenas sacrificam os gêmeos recém-nascidos, por considerá-los maléficos, como lembra alguém na reunião cômica e reveladora que é promovida pelo filme com os entrevistados.
Pelo "excesso" da duplicação, os gêmeos expõem a falta que o resto dos homens passa a vida tentando suprir, contornar ou simplesmente não ver. É a representação de que, ao indivíduo, falta algo que ele não vê, embora sinta, e que vai passar a vida buscando, seja no amor, numa "alma gêmea", seja por um caminho espiritual ou terapêutico, atrás do "próprio eu".
O mais divertido é que a forma que os gêmeos adotam para falar dessa falta é, em geral, a da anedota. "Quando é que a gente percebeu que os outros não eram gêmeos?", pergunta Paulo Caruso ao irmão Chico, ou vice-versa.
Quando os entrevistados por fim se reúnem, os transformistas Doly e Doly, acuados pelos olhares atônitos de irmãos e irmãs aparentemente mais convencionais, dizem que estão se sentindo como se fossem gêmeos andando na rua. Não é por acaso que os dois tenham assumido uma única identidade (Doly) quando dão o seu show noturno, cada um de um lado de uma moldura vazada, que faz as vezes de um espelho. Desse ponto de vista, o título do filme, que vem do poema de Drummond, não poderia ser mais apropriado: "Perder-te seria/ perder-me a mim próprio".



Carrego Comigo
    
Direção: Chico Teixeira
Produção: Brasil, 2001
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco




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