|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
O invisível pela ótica pública
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O projeto original de Chico
Teixeira, diretor do documentário "Carrego Comigo", era
fazer um filme em que os gêmeos
fossem vistos pelo viés do espetáculo. A maioria dos entrevistados
tem algum tipo de relação com a
exposição pública.
Isso vai dos dublês de cinema
Stanley e Ricardo às duplas de
cantoras Célia e Celma ou Pepê e
Neném; dos modelos de revistas
eróticas Márfio e Fariomar às
misses Ana Cristina e Elizabeth
(primeiro e segundo lugar no
concurso Miss Guanabara de 66,
decidido no cara ou coroa); dos
transformistas Doly e Doly aos religiosos frei Clemente e padre
Henrique, cuja missa, celebrada a
quatro mãos, tem tanto de apoteose teatral quanto o show das
drag queens, cujo paralelo é enfatizado pela montagem.
Vem daí a inteligência e a sensibilidade do filme: ao mostrá-los
pela ótica da exposição, o longa
acaba destacando o que não é visível. Mostra os gêmeos como a representação aguda de uma falta
que é comum a todo o mundo.
Não é à toa que certos grupos
indígenas sacrificam os gêmeos
recém-nascidos, por considerá-los maléficos, como lembra alguém na reunião cômica e reveladora que é promovida pelo filme
com os entrevistados.
Pelo "excesso" da duplicação, os
gêmeos expõem a falta que o resto
dos homens passa a vida tentando
suprir, contornar ou simplesmente não ver. É a representação de
que, ao indivíduo, falta algo que
ele não vê, embora sinta, e que vai
passar a vida buscando, seja no
amor, numa "alma gêmea", seja
por um caminho espiritual ou terapêutico, atrás do "próprio eu".
O mais divertido é que a forma
que os gêmeos adotam para falar
dessa falta é, em geral, a da anedota. "Quando é que a gente percebeu que os outros não eram gêmeos?", pergunta Paulo Caruso
ao irmão Chico, ou vice-versa.
Quando os entrevistados por
fim se reúnem, os transformistas
Doly e Doly, acuados pelos olhares atônitos de irmãos e irmãs
aparentemente mais convencionais, dizem que estão se sentindo
como se fossem gêmeos andando
na rua. Não é por acaso que os
dois tenham assumido uma única
identidade (Doly) quando dão o
seu show noturno, cada um de
um lado de uma moldura vazada,
que faz as vezes de um espelho.
Desse ponto de vista, o título do
filme, que vem do poema de
Drummond, não poderia ser
mais apropriado: "Perder-te seria/ perder-me a mim próprio".
Carrego Comigo
Direção: Chico Teixeira
Produção: Brasil, 2001
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco
Texto Anterior: Cinema/Estréia - "Carrego Comigo": Gêmeos servem para discutir identidade Próximo Texto: "Monstros S/A": No peito dos monstros também há um coração Índice
|