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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Invadir, ocupar, colorir

Invadido há um ano por cerca de 2.000 pessoas do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), o edifício da Prestes Maia que fica ao lado da Pinacoteca do Estado foi palco, na semana passada, de mais uma ocupação. Cem artistas -entre eles, Regina Silveira e Rochelle Costi- inventaram um tal de ACMSTC, ou Arte Contemporânea Movimento dos Sem-Teto do Centro, e deixaram galerias e ateliês para invadir o prédio com suas intervenções artísticas. Durante vários dias, conviveram com os moradores para preparar trabalhos que seriam expostos ao público sábado e hoje.
 
Para os artistas, trata-se de uma excepcional experiência político-artístico-social. "Nós é que estamos sendo "intervidos". É uma experiência muito forte. O suporte são as pessoas, e não o lugar", diz Túlio Tavares, um dos organizadores. "Estamos nos abrindo para essa sociedade voraz", diz Eduardo Verderame, 32. "É importante sair da esfera puramente artística e buscar situações de vida extremas."
 
Para muitos dos moradores, aquela festa estranha com gente esquisita não queria dizer muita coisa. "Se trouxessem cesta básica, seria melhor", dizia Getúlio Veloso, 66, que na quarta-feira caminhava indiferente entre os artistas. Veloso participou da invasão do prédio da Prestes Maia, em 2002, porque estava apaixonado por uma namorada que aderiu ao movimento. Acabou abandonado por ela. Veloso usa um tampão no olho. Diz ele que perdeu a visão "na Guerra dos Seis Dias", por Israel. Por causa do problema, vê cada imagem multiplicada por três.
 
A resistência dos moradores foi sendo quebrada aos poucos. A costureira maranhense Célia Lopes, por exemplo, decidiu participar da intervenção com um desfile. Autoproclamada "estilista do ridículo", convocou 12 vizinhas para desfilar com roupas de plásticos verdes de garrafas de refrigerante e fibra de coco -como, segundo ela, mulheres "pós-modernas".
Ao perceber o vai-e-vem dos artistas, a costureira maranhense Vanda Araújo, 42, pegou emprestada uma máquina de costura e fez várias bonecas de pano para vender durante a "festa" do fim-de-semana. Elas custam de R$ 7 a R$ 15 e têm um cheiro forte de sabonete. Moradora há três meses do edifício (ela antes vivia em albergues), Vanda acha que, se vender muitas bonecas, pode recomeçar a vida, comprando uma máquina de costura.
 
A fotógrafa Rochelle Costi, 42, que participou da 24ª Bienal de SP e de exposições internacionais, chegou ao prédio da Prestes Maia na quinta. Carregava pedaços de outdoors feitos de lona vinílica e não sabia muito o que fazer. Na entrada, foi puxada pelo braço.
 
Era a moradora Izabel da Silva, 52, do primeiro andar. Pediu para Costi "dar uma olhadinha" em seus desenhos, de peixes, flores e borboletas, em papel e nas paredes. As duas acabaram fazendo uma toalha e uma cortina, com desenhos de Izabel.
 
A participação mais badalada do evento é a de Regina Silveira, uma das artistas brasileiras de maior reconhecimento internacional. Ela adaptou um desenho para folhetos que serão distribuídos hoje pelos moradores.
 
A Pinacoteca fica a 200 m do edifício. Mas, mesmo nas exposições gratuitas, os vizinhos sem-teto nunca pisam lá.
 
"Imagine eu chegar lá de sandália havaiana!", diz Maria Jaira de Andrade, 40, coordenadora dos sem-teto e manda-chuva do prédio. "Sou delegada na hora de defender e promotora na de acusar", diz. Os artistas ficaram perplexos: na terça, uma moradora foi enxotada com os filhos porque estava, supostamente, fumando maconha.
 
Eduardo Verderame, 32, em exposição no Sesc Paulista, passou dias no prédio fazendo, nas paredes, o contorno dos moradores. Depois, dentro das silhuetas, brincava de jogo-da-velha com seus modelos -como Frank Bruno do Nascimento, 7. "O jogo-da-velha não tem fim, como a nossa vida: uma hora perde, outra hora ganha, mas a gente continua jogando", explica Verderame. O pequeno Frank não entendeu nada, mas adorou brincar com o artista e também com uma câmera que emprestaram a ele. É que Frank quer ser cineasta.
 
Há intervenções de todos os tipos. José Luiz Sampaio, 28, e Izabel Franco, 28, estão montando um quarto escuro com 20 câmeras de lata, para que os moradores façam auto-retratos. No último andar, o gravurista André Bueno, 27, está fazendo uma pipa de papel de 20 m. Difícil vai ser tirá-la de lá. "Os moradores entraram pela janela e só saem daqui à força. Como a pipa", diz ele.


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