São Paulo, Sábado, 15 de Janeiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
As crônicas que são anacrônicas

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Em certos meios literários brasileiros não fica bem gostar de Cecília Meireles. Graças ao seu espiritualismo singelo, contraposto a uma modernidade mais materialista e provocadora, a poeta e educadora ficou por demais associada à imagem um tanto convencional e antiquada da professorinha católica. E o preconceito acabou ofuscando o que há de mais interessante em sua obra.
Os portugueses, talvez pela distância, por estarem menos envolvidos na defesa de uma determinada escola local contra outra, puderam admirá-la menos pela imagem que lhe coube na vida literária e mais pela própria poesia. E acertaram ao reconhecer aí uma grande poeta.
Um exemplo dessa discreta originalidade está nas "Crônicas de Viagem", cujos primeiros dois volumes já lançados fazem parte do projeto da editora Nova Fronteira de publicar aos poucos a totalidade da obra em prosa da autora, em 23 livros. Nessas crônicas, o mais curioso e inusitado é também o que elas têm de mais antiquado e o que as torna intrinsecamente contraditórias: são crônicas anacrônicas.
Cecília Meireles é em grande parte uma tradicionalista e uma conservadora num país sem tradições. Além de ser nostálgica por excelência. Uma coisa está ligada à outra. Todas as suas crônicas são marcadas por uma mania de perda. As viagens inspiram uma prosa suave, plácida. Sua língua límpida faz sentir um tempo e um lugar mais tranquilos, mas que são um tempo e um lugar sempre perdidos.
No confronto com outros países, com o antigo, o histórico e o desenvolvimento alheio, o que essas crônicas ressaltam é mais uma imagem do Brasil, como falta, em negativo, do que de qualquer outro país real que parece estar descrevendo.
"Muito longe, lá embaixo, no fim do mapa, esse país ainda desatento a certas coisas tão sérias, tão profundas, tão graves: esse país chamado Brasil" ou "Ah! Um Brasil que eu mesma já não sei se é real ou imaginado, mas que esteve a ponto de existir, que se podia ter desenvolvido num desabrochar natural de todos os seus poderes e pendores, sem deformações, extravios, embustes..."
São crônicas que sonham com um passado ideal que poderia redimir o presente imperfeito. Um passado que nunca existiu e que é o motor de uma nostalgia sem fundo.
À atual barbárie os nostálgicos de hoje costumam contrapor o Rio dos anos 50. Mas, para Cecília Meireles, "esta triste cidade" já estava perdida em 1952: "As almas desapareceram, e os viventes que hoje aparecem estão todos armados de facas, punhais, revólveres de todos os calibres. Pedem relógios, carteiras, qualquer embrulho, só para começo de conversa, -porque logo matam, por matar, e nem o que pedem levam (...). Quem foi que fez isto à Heróica e Leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro?"
A nostalgia radical da autora idealiza o passado como forma de nunca se contentar com o presente, seja ele qual for. E, de tanto lamentar a perda do passado idealizado, termina por ser premonitória, por adiantar o futuro e a morte.
A nostalgia aqui serve tanto a um projeto educador em busca de um futuro melhor, como a um processo melancólico que avança em direção à morte. "Quero retroceder aos aléns de mim mesma! (...) Reduze-me ao pó que fui!", dizem os versos de um conhecido poema da autora ("Os Homens Gloriosos").
Todas as viagens de Cecília Meireles -a Paris, Itália, Holanda ou Índia- são sempre "para um lugar que certamente não existe". E, portanto, ao qual "não chegaria nunca". O lugar de uma nostalgia inconsolável.
Em compasso com essa idealização, viajar para a autora é também uma forma de recobrar a atenção sobre as coisas, contra a força do hábito e a rotina, uma forma de voltar a se surpreender com o corriqueiro, de tornar tudo interessante e novidade. "Creio que só conhecemos as cidades onde não vivemos habitualmente." O que só confirma a atração por um mundo idealizado.
Cecília Meireles tem o dom de falar do que não existe. Daí a nostalgia ser o alimento das suas crônicas. Elas são melhores quando a escritora relata suas viagens não às cidades que todos conhecem, nem que seja de nome, mas a lugares recônditos e que se prestam mais facilmente à ficção, como uma certa "ilha dos Pássaros" ao largo da Holanda.
"Gostei muito da baronesa, que, além de grande conhecedora de ciência e de história, também acreditava em fantasmas. E foi ela que nos sugeriu uma visita à ilha dos Pássaros. Uma ilha onde os pássaros são protegidos de todos os atentados; uma ilha só deles". E é aí, nesse território quase mítico, de fantasmas, que se revela a verdadeira vocação dessas crônicas para um mundo menos físico e mais espiritual.


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Livro: Crônicas de Viagem 2 Autor: Cecília Meireles Editora: Nova Fronteira Quanto: R$ 26 (286 págs.)

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