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RESENHA DA SEMANA
As crônicas que são anacrônicas
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Em certos
meios literários
brasileiros não
fica bem gostar
de Cecília Meireles. Graças ao seu
espiritualismo singelo, contraposto a uma modernidade
mais materialista e provocadora, a poeta e educadora ficou
por demais associada à imagem um tanto convencional e
antiquada da professorinha católica. E o preconceito acabou
ofuscando o que há de mais interessante em sua obra.
Os portugueses, talvez pela
distância, por estarem menos
envolvidos na defesa de uma
determinada escola local contra outra, puderam admirá-la
menos pela imagem que lhe
coube na vida literária e mais
pela própria poesia. E acertaram ao reconhecer aí uma
grande poeta.
Um exemplo dessa discreta
originalidade está nas "Crônicas de Viagem", cujos primeiros dois volumes já lançados
fazem parte do projeto da editora Nova Fronteira de publicar aos poucos a totalidade da
obra em prosa da autora, em 23
livros. Nessas crônicas, o mais
curioso e inusitado é também o
que elas têm de mais antiquado
e o que as torna intrinsecamente contraditórias: são crônicas
anacrônicas.
Cecília Meireles é em grande
parte uma tradicionalista e
uma conservadora num país
sem tradições. Além de ser nostálgica por excelência. Uma
coisa está ligada à outra. Todas
as suas crônicas são marcadas
por uma mania de perda. As
viagens inspiram uma prosa
suave, plácida. Sua língua límpida faz sentir um tempo e um
lugar mais tranquilos, mas que
são um tempo e um lugar sempre perdidos.
No confronto com outros
países, com o antigo, o histórico e o desenvolvimento alheio,
o que essas crônicas ressaltam é
mais uma imagem do Brasil,
como falta, em negativo, do
que de qualquer outro país real
que parece estar descrevendo.
"Muito longe, lá embaixo, no
fim do mapa, esse país ainda
desatento a certas coisas tão sérias, tão profundas, tão graves:
esse país chamado Brasil" ou
"Ah! Um Brasil que eu mesma
já não sei se é real ou imaginado, mas que esteve a ponto de
existir, que se podia ter desenvolvido num desabrochar natural de todos os seus poderes e
pendores, sem deformações,
extravios, embustes..."
São crônicas que sonham
com um passado ideal que poderia redimir o presente imperfeito. Um passado que nunca existiu e que é o motor de
uma nostalgia sem fundo.
À atual barbárie os nostálgicos de hoje costumam contrapor o Rio dos anos 50. Mas, para Cecília Meireles, "esta triste
cidade" já estava perdida em
1952: "As almas desapareceram, e os viventes que hoje aparecem estão todos armados de
facas, punhais, revólveres de
todos os calibres. Pedem relógios, carteiras, qualquer embrulho, só para começo de conversa, -porque logo matam,
por matar, e nem o que pedem
levam (...). Quem foi que fez isto à Heróica e Leal Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro?"
A nostalgia radical da autora
idealiza o passado como forma
de nunca se contentar com o
presente, seja ele qual for. E, de
tanto lamentar a perda do passado idealizado, termina por
ser premonitória, por adiantar
o futuro e a morte.
A nostalgia aqui serve tanto a
um projeto educador em busca
de um futuro melhor, como a
um processo melancólico que
avança em direção à morte.
"Quero retroceder aos aléns de
mim mesma! (...) Reduze-me
ao pó que fui!", dizem os versos
de um conhecido poema da autora ("Os Homens Gloriosos").
Todas as viagens de Cecília
Meireles -a Paris, Itália, Holanda ou Índia- são sempre
"para um lugar que certamente
não existe". E, portanto, ao
qual "não chegaria nunca". O
lugar de uma nostalgia inconsolável.
Em compasso com essa idealização, viajar para a autora é
também uma forma de recobrar a atenção sobre as coisas,
contra a força do hábito e a rotina, uma forma de voltar a se
surpreender com o corriqueiro, de tornar tudo interessante
e novidade. "Creio que só conhecemos as cidades onde não
vivemos habitualmente." O
que só confirma a atração por
um mundo idealizado.
Cecília Meireles tem o dom
de falar do que não existe. Daí a
nostalgia ser o alimento das
suas crônicas. Elas são melhores quando a escritora relata
suas viagens não às cidades que
todos conhecem, nem que seja
de nome, mas a lugares recônditos e que se prestam mais facilmente à ficção, como uma
certa "ilha dos Pássaros" ao largo da Holanda.
"Gostei muito da baronesa,
que, além de grande conhecedora de ciência e de história,
também acreditava em fantasmas. E foi ela que nos sugeriu
uma visita à ilha dos Pássaros.
Uma ilha onde os pássaros são
protegidos de todos os atentados; uma ilha só deles". E é aí,
nesse território quase mítico,
de fantasmas, que se revela a
verdadeira vocação dessas crônicas para um mundo menos
físico e mais espiritual.
Avaliação:
Livro: Crônicas de Viagem 2
Autor: Cecília Meireles
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 26 (286 págs.)
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