São Paulo, Sexta-feira, 15 de Janeiro de 1999
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Van Sant ousa menos que o original

AMIR LABAKI
de Nova York

A estréia hoje da refilmagem de "Psicose", de Hitchcock, assinada por Gus van Sant representa uma triste abertura para a celebração no Brasil do centenário de nascimento do mestre britânico, a ser completado em agosto próximo. Não que Van Sant esteja preocupado com a efeméride.
Ele próprio reconheceu que refez "Psicose" apenas devido à conjuntura de trabalho junto aos estúdios Universal. "Poderia ter sido um faroeste de John Ford", disse. Sorte de Ford, azar de Hitchcock. E pior para Van Sant.
O diretor de "Midnight Cowboy" tentou vender seu "Psicose" como "um divertido tipo de filme experimental que pode servir ao mercado". Sua nova obra não seria uma "refilmagem", mas uma espécie de "apropriação", termo emprestado da vanguarda dos anos 60-70.
Contudo, o próprio cineasta frisou os limites do conceito de "apropriação" de uma obra de arte: "Assim que você põe algo num contexto diferente, está contaminando-o com seu próprio estilo".
De fato, algo do universo de Gus van Sant transborda de sua versão pretensamente ultrafiel para "Psicose". Nada, contudo, contribui para uma obra mais bela, complexa ou perturbadora que o original.
Nunca é demais lembrar a ousadia do "Psicose" original. Em primeiro lugar, o enredo até hoje desafia resumos, em sua astuta e constante inversão de expectativas da platéia. Secretária rouba chefe, foge atabalhoadamente, desaparece ao escolher mal onde parar e é procurada por seu amante, sua irmã e por um detetive. O impacto das reviravoltas era potencializado pelas surpreendentes explosões coreografadas de violência.
Em segundo, o tratamento da questão sexual superava de longe as convenções de então para os filmes dos grandes estúdios. Marion Crane (Janet Leigh), a protagonista, é uma mulher sexualmente ativa, não uma dedicada esposa ou uma virgem casadoira. Por seu turno, Norman Bates (Anthony Perkins), seu hospedeiro, é um misantropo que sofre do mais radical complexo de Édipo.
O "Psicose" de Gus van Sant praticamente retoma plano a plano, ângulo a ângulo o de Hitchcock. Dos créditos de Saul Bass à conclusão psicobabaca, tudo se passa como na reencenação de um texto teatral clássico, com amplo respeito ao roteiro original. Manteve-se até o essencial da eletrizante trilha de Bernard Herrmann.
Mas afinal qual o toque de Van Sant? É explicitar tudo que antes era sutil. Hitchcock rodou em preto-e-branco, Van Sant assina um estudo em laranja (cor de sangue aguado). A sensualidade represada do original ressurge em releitura explicitamente homossexual, do Bates de Vince Vaughn à irmã Crane de Julianne Moore, enquanto uma perdida Anne Heche apaga toda a carga erótica da ladra Marion.
Sequências fundamentadas pela precisão da montagem, como a dos assassinatos no chuveiro e na escada, ganharam comentários visuais totalmente banais. Ainda mais infeliz foi Van Sant ao fazer seu Bates se masturbar olhando pelo buraco na parede Marion tirar a roupa. A tensão dramática desaba quando no original crescia.
Ninguém esquece a primeira vez que assiste ou assistiu o "Psicose" de Hitchcock, ainda que o faça hoje em dia, mesmo limitado à iniciação em alguma cópia em vídeo. Nada similar acontece, aconteceu ou acontecerá com esse "Psicose" apropriado por Van Sant. Não basta reproduzir a matéria. Essencial é ser fiel ao espírito.


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