|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NÃO GOSTEI
Van Sant ousa menos que o original
AMIR LABAKI
de Nova York
A estréia hoje da refilmagem de
"Psicose", de Hitchcock, assinada
por Gus van Sant representa uma
triste abertura para a celebração
no Brasil do centenário de nascimento do mestre britânico, a ser
completado em agosto próximo.
Não que Van Sant esteja preocupado com a efeméride.
Ele próprio reconheceu que refez
"Psicose" apenas devido à conjuntura de trabalho junto aos estúdios
Universal. "Poderia ter sido um faroeste de John Ford", disse. Sorte
de Ford, azar de Hitchcock. E pior
para Van Sant.
O diretor de "Midnight Cowboy"
tentou vender seu "Psicose" como
"um divertido tipo de filme experimental que pode servir ao mercado". Sua nova obra não seria uma
"refilmagem", mas uma espécie de
"apropriação", termo emprestado
da vanguarda dos anos 60-70.
Contudo, o próprio cineasta frisou os limites do conceito de
"apropriação" de uma obra de arte: "Assim que você põe algo num
contexto diferente, está contaminando-o com seu próprio estilo".
De fato, algo do universo de Gus
van Sant transborda de sua versão
pretensamente ultrafiel para "Psicose". Nada, contudo, contribui
para uma obra mais bela, complexa ou perturbadora que o original.
Nunca é demais lembrar a ousadia do "Psicose" original. Em primeiro lugar, o enredo até hoje desafia resumos, em sua astuta e
constante inversão de expectativas
da platéia. Secretária rouba chefe,
foge atabalhoadamente, desaparece ao escolher mal onde parar e é
procurada por seu amante, sua irmã e por um detetive. O impacto
das reviravoltas era potencializado
pelas surpreendentes explosões
coreografadas de violência.
Em segundo, o tratamento da
questão sexual superava de longe
as convenções de então para os filmes dos grandes estúdios. Marion
Crane (Janet Leigh), a protagonista, é uma mulher sexualmente ativa, não uma dedicada esposa ou
uma virgem casadoira. Por seu turno, Norman Bates (Anthony Perkins), seu hospedeiro, é um misantropo que sofre do mais radical
complexo de Édipo.
O "Psicose" de Gus van Sant praticamente retoma plano a plano,
ângulo a ângulo o de Hitchcock.
Dos créditos de Saul Bass à conclusão psicobabaca, tudo se passa como na reencenação de um texto
teatral clássico, com amplo respeito ao roteiro original. Manteve-se
até o essencial da eletrizante trilha
de Bernard Herrmann.
Mas afinal qual o toque de Van
Sant? É explicitar tudo que antes
era sutil. Hitchcock rodou em preto-e-branco, Van Sant assina um
estudo em laranja (cor de sangue
aguado). A sensualidade represada
do original ressurge em releitura
explicitamente homossexual, do
Bates de Vince Vaughn à irmã Crane de Julianne Moore, enquanto
uma perdida Anne Heche apaga
toda a carga erótica da ladra Marion.
Sequências fundamentadas pela
precisão da montagem, como a
dos assassinatos no chuveiro e na
escada, ganharam comentários visuais totalmente banais. Ainda
mais infeliz foi Van Sant ao fazer
seu Bates se masturbar olhando
pelo buraco na parede Marion tirar
a roupa. A tensão dramática desaba quando no original crescia.
Ninguém esquece a primeira vez
que assiste ou assistiu o "Psicose"
de Hitchcock, ainda que o faça hoje
em dia, mesmo limitado à iniciação em alguma cópia em vídeo.
Nada similar acontece, aconteceu
ou acontecerá com esse "Psicose"
apropriado por Van Sant. Não basta reproduzir a matéria. Essencial é
ser fiel ao espírito.
Texto Anterior: "O cinema não é intocável", diz Vaughn Próximo Texto: Comparar os dois filmes é um equívoco Índice
|