INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Para Rubem Biáfora (1922-1996), grande crítico do passado, o olhar era o que há de mais essencial no ator de cinema. De tal atriz, disse certa vez que ela estragou um filme por ser vagamente estrábica.
Mudam os tempos ou mudam os atores. Quem dirá, hoje, que John Malkovich estraga um filme por ser um tanto vesgo? Ou Daniel Auteuil? Há outros casos a verificar, com toda certeza.
Grandes atores costumam contornar as deficiências. Neste caso preciso, no entanto, esses atores tiram partido da peculiaridade do olhar. Neste fim de semana será possível verificar em dois filmes como John Malkovich faz do estrabismo uma virtude: "Ligações Perigosas" (domingo, 15h, Cinemax Prime), de Stephen Frears, e "A Sombra do Vampiro" (domingo, Telecine Premium, 21h55), de Elias Mehridge.
Em ambos os casos, o estrelato é compartilhado. Em "Ligações", com Michelle Pfeiffer e Keanu Reeves; em "A Sombra", com Willem Dafoe (neste último quem brilha mesmo é Dafoe, mas isso é outra história). Em "Ligações Perigosas", adapta-se o célebre romance epistolar de Laclos. O segundo filme é uma notável ficção sobre as filmagens do "Nosferatu" de F.W. Murnau.
Na pele do visconde de Valmont, em "Ligações", o estrabismo de Malkovich parece a expressão visível da tortuosidade de sua alma, que os olhos ao mesmo tempo mostram e escondem.
Na pele de F.W. Murnau, em "A Sombra", o estrabismo como que distancia sutilmente o personagem do espectador, tornando mais misteriosas suas intenções, no momento em que faz uma absoluta obra-prima.
Esse retraimento da figura, tão próprio de Malkovich, tem muito a ver com seus olhos, que em certa medida o isolam do mundo. Tem a ver também com seu carisma. E com essa espécie de mistério que levou alguém a fazer um filme cujo protagonista era o interior de sua cabeça.


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