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São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Do lado de fora

Num programa exibido pela emissora francesa TV5 a propósito da guerra no Iraque, Edward Said, crítico literário de origem palestina radicado nos Estados Unidos e autor do recém-publicado no Brasil "Reflexões sobre o Exílio" (Companhia das Letras), falava do sentimento de não pertencer a lugar nenhum, não como falta, mas como potência, sem nostalgia.
A julgar pela cobertura feita pela mídia americana desde o início da guerra, o espectador é levado a crer que, de fato, só se pode pensar do lado de fora, quando não se pertence a lugar nenhum. Said é hoje a representação mais emblemática do homem fora do lugar: ao mesmo tempo, militante da causa palestina e crítico severo do governo de Arafat; intelectual sem país, vivendo num dos países em que mais se mistifica a idéia da "volta ao lar"; cidadão americano num tempo em que a maioria dos americanos, segundo as pesquisas, pensa mal, para não dizer que mal pensa.
Ninguém nunca teve dúvida quanto às atrocidades perpetradas por Saddam Hussein contra os curdos e a população iraquiana - razão suficiente para saudar a queda do ditador, mas não a impostura e a hipocrisia de uma guerra que viola alguns dos princípios mais valiosos conquistados pelo Ocidente, em nome desses mesmos princípios.
Poucos se lembram de que até um ano antes da Guerra do Golfo, em 1991, e depois de já ter perpetrado muitas dessas atrocidades, Saddam Hussein continuava em bons termos com os Estados Unidos, pelo menos para pedir à embaixadora americana licença para invadir o Kuait - razão suficiente para deixar até o mais convicto dos otimistas com a pulga atrás da orelha quanto ao que vem pela frente.
Na mesma entrevista, Said dizia que tudo começa a dar errado na hora em que os povos, educados para isso, passam a acreditar que não há valores comuns a todos os seres humanos, mas valores exclusivos a suas próprias culturas, sejam eles alemães, judeus, muçulmanos, ingleses ou americanos. Valores dos quais eles são o exemplo, além de porta-vozes, disseminadores e guardiães. Começa aí a impostura em nome da civilização e do progresso.
Para o americano que acredita piamente no que dizem seus governantes, e que aprendeu desde cedo que a corrupção é exclusiva do Terceiro Mundo, não há do que desconfiar, por exemplo, quando Washington promete uma fatia da reconstrução do Iraque à subsidiária de uma companhia antes comandada pelo atual vice-presidente dos Estados Unidos - mesmo se for para depois voltar atrás, ao se dar conta das conseqüências da imoralidade junto a outras empresas americanas interessadas e à opinião pública internacional. Afinal, se os Estados Unidos são a encarnação do Bem, como poderiam estar representando o Mal?
Já em 1934, o austríaco Hermann Broch via a situação mundial como conseqüência de uma dissolução do espírito. Em seu ensaio "Geist und Zeitgeist", publicado recentemente nos Estados Unidos com o título "O Espírito numa Era Não-espiritual", o autor de "A Morte de Virgílio" lamentava a perda do poder da palavra filosófica ou religiosa, a perda da unidade e de uma compreensão global do mundo, a perda da dúvida e da interpretação, em nome da retórica e do mutismo de uma realidade racionalmente positivista, inumana, matematicamente replicável.
Diante da perplexidade provocada por tempos sombrios, há sempre o risco de cair na armadilha de pensar com o coração. O pensamento de Broch, por mais idiossincrático que fosse, tinha embasamento histórico. Culpava o positivismo racionalista pela perda da dimensão filosófico-religiosa e pelos males do mundo, mas era ainda um pensamento racional.
Tempos sombrios muitas vezes engendram explicações fáceis, apressadas e a-históricas. Um bruaá retórico, justamente. Mesmo na periferia dos centros de decisão, a violência muitas vezes esgota os homens da razão. O moralismo, nesse caso, passa a servir tanto à esquerda como à direita. E, em ambos os casos, ele distorce e desfoca o óbvio, por ingenuidade ou hipocrisia.
É um pleonasmo explicar a barbárie pelo fim da civilização. Quem diz que a guerra no Iraque é fruto de uma dissolução moral da nossa época recorre, sem querer, ao mesmo argumento do integrismo religioso americano que ajudou a eleger Bush e ao qual ele deve satisfações. O mesmo integrismo que procura todo o tipo de pretextos para cercear as liberdades civis dos próprios americanos. Quem acha que estamos chegando ao fim da civilização perdeu o senso histórico de que as relações sociais são jogos de força cíclicos e recorrentes. Deve ter se esquecido da barbárie da colonização da África pelos europeus e do nazismo. Deve ter esquecido que, antes dos Estados Unidos, a Europa também "traiu e destruiu as suas próprias conquistas", nas palavras de Broch.
Os homens continuam os mesmos. A diferença mais assustadora, hoje, é de escala e de amplitude: a ameaça de globalização do conflito criada pela constatação da supremacia absoluta de um único país. O sentimento de que impera a lei do mais forte e já não há a quem recorrer em caso de injustiça. A constatação de que o mais forte agora é também o árbitro. O risco de não haver mais como pensar do lado de fora.


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