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BERNARDO CARVALHO
Do lado de fora
Num programa exibido pela
emissora francesa TV5 a
propósito da guerra no Iraque,
Edward Said, crítico literário de
origem palestina radicado nos Estados Unidos e autor do recém-publicado no Brasil "Reflexões sobre o Exílio" (Companhia das Letras), falava do sentimento de não pertencer a lugar nenhum,
não como falta, mas como potência, sem nostalgia.
A julgar pela cobertura feita pela mídia americana desde o início
da guerra, o espectador é levado a
crer que, de fato, só se pode pensar
do lado de fora, quando não se
pertence a lugar nenhum. Said é
hoje a representação mais emblemática do homem fora do lugar:
ao mesmo tempo, militante da
causa palestina e crítico severo do
governo de Arafat; intelectual
sem país, vivendo num dos países
em que mais se mistifica a idéia
da "volta ao lar"; cidadão americano num tempo em que a maioria dos americanos, segundo as pesquisas, pensa mal, para não
dizer que mal pensa.
Ninguém nunca teve dúvida
quanto às atrocidades perpetradas por Saddam Hussein contra
os curdos e a população iraquiana - razão suficiente para saudar a queda do ditador, mas não
a impostura e a hipocrisia de uma
guerra que viola alguns dos princípios mais valiosos conquistados
pelo Ocidente, em nome desses
mesmos princípios.
Poucos se lembram de que até
um ano antes da Guerra do Golfo,
em 1991, e depois de já ter perpetrado muitas dessas atrocidades,
Saddam Hussein continuava em
bons termos com os Estados Unidos, pelo menos para pedir à embaixadora americana licença para invadir o Kuait - razão suficiente para deixar até o mais convicto dos otimistas com a pulga
atrás da orelha quanto ao que
vem pela frente.
Na mesma entrevista, Said dizia que tudo começa a dar errado
na hora em que os povos, educados para isso, passam a acreditar
que não há valores comuns a todos os seres humanos, mas valores exclusivos a suas próprias culturas, sejam eles alemães, judeus,
muçulmanos, ingleses ou americanos. Valores dos quais eles são o
exemplo, além de porta-vozes,
disseminadores e guardiães. Começa aí a impostura em nome da
civilização e do progresso.
Para o americano que acredita
piamente no que dizem seus governantes, e que aprendeu desde
cedo que a corrupção é exclusiva
do Terceiro Mundo, não há do
que desconfiar, por exemplo,
quando Washington promete
uma fatia da reconstrução do Iraque à subsidiária de uma companhia antes comandada pelo atual
vice-presidente dos Estados Unidos - mesmo se for para depois
voltar atrás, ao se dar conta das
conseqüências da imoralidade
junto a outras empresas americanas interessadas e à opinião pública internacional. Afinal, se os
Estados Unidos são a encarnação
do Bem, como poderiam estar representando o Mal?
Já em 1934, o austríaco Hermann Broch via a situação mundial como conseqüência de uma dissolução do espírito. Em seu ensaio "Geist und Zeitgeist", publicado recentemente nos Estados
Unidos com o título "O Espírito
numa Era Não-espiritual", o autor de "A Morte de Virgílio" lamentava a perda do poder da palavra filosófica ou religiosa, a perda da unidade e de uma compreensão global do mundo, a perda da dúvida e da interpretação,
em nome da retórica e do mutismo de uma realidade racionalmente positivista, inumana, matematicamente replicável.
Diante da perplexidade provocada por tempos sombrios, há
sempre o risco de cair na armadilha de pensar com o coração. O
pensamento de Broch, por mais
idiossincrático que fosse, tinha
embasamento histórico. Culpava
o positivismo racionalista pela
perda da dimensão filosófico-religiosa e pelos males do mundo,
mas era ainda um pensamento
racional.
Tempos sombrios muitas vezes
engendram explicações fáceis,
apressadas e a-históricas. Um
bruaá retórico, justamente. Mesmo na periferia dos centros de decisão, a violência muitas vezes esgota os homens da razão. O moralismo, nesse caso, passa a servir tanto à esquerda como à direita.
E, em ambos os casos, ele distorce
e desfoca o óbvio, por ingenuidade ou hipocrisia.
É um pleonasmo explicar a barbárie pelo fim da civilização.
Quem diz que a guerra no Iraque
é fruto de uma dissolução moral
da nossa época recorre, sem querer, ao mesmo argumento do integrismo religioso americano que
ajudou a eleger Bush e ao qual ele
deve satisfações. O mesmo integrismo que procura todo o tipo de
pretextos para cercear as liberdades civis dos próprios americanos.
Quem acha que estamos chegando ao fim da civilização perdeu o
senso histórico de que as relações
sociais são jogos de força cíclicos e
recorrentes. Deve ter se esquecido
da barbárie da colonização da
África pelos europeus e do nazismo. Deve ter esquecido que, antes
dos Estados Unidos, a Europa
também "traiu e destruiu as suas
próprias conquistas", nas palavras de Broch.
Os homens continuam os mesmos. A diferença mais assustadora, hoje, é de escala e de amplitude: a ameaça de globalização do
conflito criada pela constatação
da supremacia absoluta de um
único país. O sentimento de que
impera a lei do mais forte e já não
há a quem recorrer em caso de injustiça. A constatação de que o
mais forte agora é também o árbitro. O risco de não haver mais como pensar do lado de fora.
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