São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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TEATRO

Peça expõe pedofilia sem maniqueísmo

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Pedofilia é um tema extremamente delicado. Não pode ser minimizado através do deboche; por outro lado, a falta de humor pode levar ao maniqueísmo do melodrama, denunciando o óbvio sem aprofundar a questão. O grande trunfo de "Como Aprendi a Dirigir um Carro", que valeu à sua autora, Paula Vogel, todos os prêmios da temporada teatral de 1997 americana -incluindo o Pulitzer-, é justamente seu tom de humor judaico, ácido e terno, que assume responsabilidades sem fechar questões.
Li'l Bit foi molestada sexualmente aos 11 anos de idade por seu tio Peck, que a ensinava a dirigir. Isso estraga a vida dos dois. Construída em flashbacks progressivos, como uma sessão de análise narrada pela própria protagonista, que apresenta cenas curtas à platéia, há um cuidado delicado de não demonizar o agressor, que é apresentado em uma fragilidade quase romântica, e não paternizar a vítima: Li'l Bit é a "Lolita" de Nabokov que conta a própria história.
Felipe Hirsch, que propõe aqui sua segunda encenação para o texto, leva esse distanciamento ao máximo. Fiel a seu tema da memória, mas se despojando cada vez mais de maneirismos cênicos, deixa a responsabilidade para os atores. São eles que mudam os poucos elementos do cenário entre uma cena e outra e caracterizam mudanças de personagens ou de época só com ritmo e postura, evitando com delicadeza cair no caricato (Catarina Abdala, uma avó lúbrica sem ser grotesca) ou nem tanto (Felipe Koury, o namorado, patético um pouco além da medida).
Paulo Betti faz um tio Peck quase galã, quase bom-moço, o que contribui para evitar chavões sobre os pedófilos, mas descaracteriza o seu lado suburbano, decadente, tornando mais inverossímil seu destino de alcoolista. Andrea Beltrão mantém seu tom cínico e neurótico, que a tem marcado em outros papéis (como "A Prova", dirigida por Aderbal Freire-Filho), mas que acaba ofuscando outros aspectos de sua criação (a mudança de postura e ritmo de acordo com as idades de Li'l Bit).
Ironia e despojamento são realçados também pelo cenário de Daniela Thomas, uma releitura cubista do cotidiano, que brinca às vezes com o texto (inclinado, parece sugerir uma observação de Li'l Bit bêbada) e promove o distanciamento por meio de um grande espelho ao fundo, que permite marcas no chão (e daí vemos que a vítima é o tio Peck, que tem o corpo circulado a giz).
Todo esse cuidado de desinflamar a questão polêmica, se, por um lado, é vital para permitir uma leitura aberta do texto, acaba dando um clima frio demais ("cool", para adotar também os referenciais culturais não adaptados do texto). A narradora-personagem, ao descrever no fim da peça o estrago emocional que a agressão do tio provocou, conta ter vivido desde então refugiada "no fogo da cabeça", com o corpo anestesiado para o espontâneo. É o que se sente também na montagem, para o bem e para o mal.


Como Aprendi a Dirigir um Carro
   
Texto: Paula Vogel
Direção: Felipe Hirsch
Com: Andréa Beltrão, Paulo Betti
Onde: Espaço Cultural Vivo (av. Dr. Chucri Zaidan, 860, Vila Gertrudes, São Paulo, tel. 0/xx/11/3188-4147)
Quando: sáb., às 19h e às 21h, e dom., às 19h; até 9 de maio
Quanto: R$ 50



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