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TEATRO
Peça expõe pedofilia sem maniqueísmo
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Pedofilia é um tema extremamente delicado. Não pode
ser minimizado através do deboche; por outro lado, a falta de humor pode levar ao maniqueísmo
do melodrama, denunciando o
óbvio sem aprofundar a questão.
O grande trunfo de "Como
Aprendi a Dirigir um Carro", que
valeu à sua autora, Paula Vogel,
todos os prêmios da temporada
teatral de 1997 americana -incluindo o Pulitzer-, é justamente seu tom de humor judaico, ácido e terno, que assume responsabilidades sem fechar questões.
Li'l Bit foi molestada sexualmente aos 11 anos de idade por
seu tio Peck, que a ensinava a dirigir. Isso estraga a vida dos dois.
Construída em flashbacks progressivos, como uma sessão de
análise narrada pela própria protagonista, que apresenta cenas
curtas à platéia, há um cuidado
delicado de não demonizar o
agressor, que é apresentado em
uma fragilidade quase romântica,
e não paternizar a vítima: Li'l Bit é
a "Lolita" de Nabokov que conta a
própria história.
Felipe Hirsch, que propõe aqui
sua segunda encenação para o
texto, leva esse distanciamento ao
máximo. Fiel a seu tema da memória, mas se despojando cada
vez mais de maneirismos cênicos,
deixa a responsabilidade para os
atores. São eles que mudam os
poucos elementos do cenário entre uma cena e outra e caracterizam mudanças de personagens
ou de época só com ritmo e postura, evitando com delicadeza cair
no caricato (Catarina Abdala,
uma avó lúbrica sem ser grotesca)
ou nem tanto (Felipe Koury, o namorado, patético um pouco além
da medida).
Paulo Betti faz um tio Peck quase galã, quase bom-moço, o que
contribui para evitar chavões sobre os pedófilos, mas descaracteriza o seu lado suburbano, decadente, tornando mais inverossímil seu destino de alcoolista. Andrea Beltrão mantém seu tom cínico e neurótico, que a tem marcado em outros papéis (como "A
Prova", dirigida por Aderbal Freire-Filho), mas que acaba ofuscando outros aspectos de sua criação
(a mudança de postura e ritmo de
acordo com as idades de Li'l Bit).
Ironia e despojamento são realçados também pelo cenário de
Daniela Thomas, uma releitura
cubista do cotidiano, que brinca
às vezes com o texto (inclinado,
parece sugerir uma observação de
Li'l Bit bêbada) e promove o distanciamento por meio de um
grande espelho ao fundo, que permite marcas no chão (e daí vemos
que a vítima é o tio Peck, que tem
o corpo circulado a giz).
Todo esse cuidado de desinflamar a questão polêmica, se, por
um lado, é vital para permitir uma
leitura aberta do texto, acaba dando um clima frio demais ("cool",
para adotar também os referenciais culturais não adaptados do
texto). A narradora-personagem,
ao descrever no fim da peça o estrago emocional que a agressão
do tio provocou, conta ter vivido
desde então refugiada "no fogo da
cabeça", com o corpo anestesiado
para o espontâneo. É o que se sente também na montagem, para o
bem e para o mal.
Como Aprendi a Dirigir um
Carro
Texto: Paula Vogel
Direção: Felipe Hirsch
Com: Andréa Beltrão, Paulo Betti
Onde: Espaço Cultural Vivo (av. Dr.
Chucri Zaidan, 860, Vila Gertrudes, São
Paulo, tel. 0/xx/11/3188-4147)
Quando: sáb., às 19h e às 21h, e dom., às
19h; até 9 de maio
Quanto: R$ 50
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