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CINEMA
Thriller político, "Em Fuga", do belga Lucas Belvaux, mostra nova realidade de terrorista urbano que foge da prisão
Longa interessa por experiência narrativa
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado popular. E quem narra um filme vê de um canto, pensa o cineasta belga Lucas Belvaux. Com
essa idéia em mente, ele realizou
uma trilogia composta por "Em
Fuga", "Um Casal Extraordinário" e "Depois da Vida".
"Em Fuga" começa com a fuga
da prisão de Bruno, um antigo
terrorista urbano que descobre
que, do lado de fora, seu passado
não se conecta mais em nada com
o presente. A antiga companheira
de armas casou-se e vive a felicidade doméstica, os valores subversivos pelos quais lutava foram
trocados pela calma de uma profissão bem-sucedida. E Bruno
tenta se impor numa realidade
paralela, feita de disfarces e de
bombas.
O tema da individualidade e de
como seu extremo impede qualquer tentativa de comunicação é
central na trilogia. Mas o trabalho
de Belvaux interessa menos pelo
que narra e mais como uma experiência narrativa.
Nos três filmes, a obediência à
fórmula aristotélica -unidade de
tempo e de espaço- serve para
implodir a unidade da situação.
Nos três, vemos cruzar os mesmos personagens, convivendo
numa mesma cidade (Grenoble).
Em cada um, as particularidades
de suas histórias constituirão o
núcleo do que o espectador assistirá. Cada filme adota um gênero
peculiar. "Em Fuga" é um thriller
político. "Um Casal Extraordinário" aparenta-se à comédia de situações. "Depois da Vida" é um
melodrama. E, em cada título,
apesar de ter sido filmado simultaneamente, Belvaux adota uma
variedade de estilo, de tons, de
narração e de interpretação para
enfatizar que dentro de qualquer
unidade cabe uma infinidade de
multiplicidades.
Perspectivismo
Enquanto experiência de narrativa, o perspectivismo de Belvaux
encontra antecedentes sobretudo
na literatura. Balzac explorou
com gênio as miríades de possibilidades em toda a "Comédia Humana", Laurence Durrell narrou
os pontos de vista no "Quarteto
de Alexandria" e Raymond Queneau contou o mesmo incidente
de 99 modos diferentes em "Exercícios de Estilo".
No cinema, Kurosawa desmontara uma história em suas tantas
versões em "Rashomon" e Zhang
Yimou plagiou o mestre em "Herói". Mas a proposta de Belvaux
não chega a ser contar a mesma
história de muitos pontos de vista
e, sim, explorar, a cada vez, lados
de sombra de seus personagens,
seus pontos cegos quando iluminados num plano, quando postos
no centro de uma cena.
O projeto permite a Belvaux se
entregar à tentação maior de todo
narrador, a de não abandonar um
personagem secundário, não condená-lo a um papel subalterno. A
trilogia, tal como construída, permite ao diretor retomar um fio de
história e persegui-lo, deixar de
lado o que antes ocupou o lugar
de principal e explorar outra linha
para saber o que se passa lá e mostrar isso ao espectador. A possibilidade dá ao cinema um recurso
que os relatos escritos sempre dominaram sob a fórmula do "enquanto isso" e que o cinema apenas adaptou na estrutura da montagem paralela.
E o formato de Belvaux funciona como antítese à fórmula mágica de filmes-corais, como o insuportável oscarizado "Crash" em
que uma suposta complexidade
mal esconde os simplismos. Ao
contrário da pretensão dos americanos, aqui funciona o princípio
do "menos é mais".
Em Fuga
Cavale
Direção: Lucas Belvaux
Produção: França/Bélgica, 2002
Com: Lucas Belvaux, Catherine Frot,
Dominique Blanc, Ornella Muti
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