São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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CINEMA

Thriller político, "Em Fuga", do belga Lucas Belvaux, mostra nova realidade de terrorista urbano que foge da prisão

Longa interessa por experiência narrativa

CÁSSIO STARLING CARLOS CRÍTICO DA FOLHA

Quem conta um conto aumenta um ponto, diz o ditado popular. E quem narra um filme vê de um canto, pensa o cineasta belga Lucas Belvaux. Com essa idéia em mente, ele realizou uma trilogia composta por "Em Fuga", "Um Casal Extraordinário" e "Depois da Vida".
"Em Fuga" começa com a fuga da prisão de Bruno, um antigo terrorista urbano que descobre que, do lado de fora, seu passado não se conecta mais em nada com o presente. A antiga companheira de armas casou-se e vive a felicidade doméstica, os valores subversivos pelos quais lutava foram trocados pela calma de uma profissão bem-sucedida. E Bruno tenta se impor numa realidade paralela, feita de disfarces e de bombas.
O tema da individualidade e de como seu extremo impede qualquer tentativa de comunicação é central na trilogia. Mas o trabalho de Belvaux interessa menos pelo que narra e mais como uma experiência narrativa.
Nos três filmes, a obediência à fórmula aristotélica -unidade de tempo e de espaço- serve para implodir a unidade da situação. Nos três, vemos cruzar os mesmos personagens, convivendo numa mesma cidade (Grenoble). Em cada um, as particularidades de suas histórias constituirão o núcleo do que o espectador assistirá. Cada filme adota um gênero peculiar. "Em Fuga" é um thriller político. "Um Casal Extraordinário" aparenta-se à comédia de situações. "Depois da Vida" é um melodrama. E, em cada título, apesar de ter sido filmado simultaneamente, Belvaux adota uma variedade de estilo, de tons, de narração e de interpretação para enfatizar que dentro de qualquer unidade cabe uma infinidade de multiplicidades.

Perspectivismo
Enquanto experiência de narrativa, o perspectivismo de Belvaux encontra antecedentes sobretudo na literatura. Balzac explorou com gênio as miríades de possibilidades em toda a "Comédia Humana", Laurence Durrell narrou os pontos de vista no "Quarteto de Alexandria" e Raymond Queneau contou o mesmo incidente de 99 modos diferentes em "Exercícios de Estilo".
No cinema, Kurosawa desmontara uma história em suas tantas versões em "Rashomon" e Zhang Yimou plagiou o mestre em "Herói". Mas a proposta de Belvaux não chega a ser contar a mesma história de muitos pontos de vista e, sim, explorar, a cada vez, lados de sombra de seus personagens, seus pontos cegos quando iluminados num plano, quando postos no centro de uma cena.
O projeto permite a Belvaux se entregar à tentação maior de todo narrador, a de não abandonar um personagem secundário, não condená-lo a um papel subalterno. A trilogia, tal como construída, permite ao diretor retomar um fio de história e persegui-lo, deixar de lado o que antes ocupou o lugar de principal e explorar outra linha para saber o que se passa lá e mostrar isso ao espectador. A possibilidade dá ao cinema um recurso que os relatos escritos sempre dominaram sob a fórmula do "enquanto isso" e que o cinema apenas adaptou na estrutura da montagem paralela.
E o formato de Belvaux funciona como antítese à fórmula mágica de filmes-corais, como o insuportável oscarizado "Crash" em que uma suposta complexidade mal esconde os simplismos. Ao contrário da pretensão dos americanos, aqui funciona o princípio do "menos é mais".


Em Fuga
Cavale
   
Direção: Lucas Belvaux
Produção: França/Bélgica, 2002
Com: Lucas Belvaux, Catherine Frot, Dominique Blanc, Ornella Muti



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