São Paulo, sábado, 15 de abril de 2006

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"PELE DE ASNO"

Demy nos arrasta ao reino da fábula

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Jacques Demy foi um cineasta do encantamento. Talvez o último dessa linhagem feita de momentos tão envolventes quanto os filmes de Jean Cocteau e Vincente Minnelli.
E certamente Demy foi o mais delirante de todos, pois, tendo tudo contra, conseguiu elevar o musical europeu à altura do de Hollywood. Com isso, a volta de "Pele de Asno" ao cartaz, com som e imagem restaurados, nos traz essa arte que hoje parece morta, já que baseada numa crença quase sem fim na verdade de seu objeto e na possibilidade de sua arte de abordá-lo e traduzi-lo em imagens.
"Pele de Asno" é a transposição para imagens cinematográficas de um conto de Perrault, sobre a princesa que, por intervenção de sua fada, foge de seu reino para escapar ao desejo incestuoso do pai. Vive na floresta, como criada, suja e escondida sob uma pele de asno, até ser localizada por um príncipe que se apaixona por ela.
Eu disse acima que eram "imagens cinematográficas" porque contos de fada envolvem imagens de maneira aguda. Só os vivenciamos por elas. Transformar imagens mentais em imagens físicas não é coisa fácil, mas é aquilo a que o filme se propõe desde o primeiro fotograma: vemos o livro e, nele, como ilustração, um castelo. A câmera se aproxima da ilustração e uma fusão nos joga no castelo real, que na verdade é tão imaginário quanto o outro.
O mesmo, aproximadamente, se passa com os atores. Catherine Deneuve, a princesa, Jacques Perrin, o príncipe, Delphine Seyrig, a fada, e Jean Marais, o rei, são figuras capazes de participar ao mesmo tempo do mundo concreto e do imaginário. Eles nos arrastam para dentro da fábula com tal intensidade que, ao fim de certo tempo, vemos a doce princesa executar uma receita de bolo como se fosse a coisa mais fantástica do mundo (na verdade, no interior da fábula, é mesmo).
"Pele de Asno" é uma variante da história do sapo que era príncipe, narrada com uma convicção que, no cinema de hoje, movido pelo cinismo, a muitos soará anacrônica. Demy faz um caminho inverso à maior parte dos filmes: parte da abominação (o incesto) para chegar ao amor sublime. Vai do inusitado ao clichê e realiza este clichê com tal convicção que ele, dobrando-se ao artista, mostra-se a nós com o frescor das coisas recém-inventadas. E, se chega pelos ares, invadindo o filme com a modernidade, isso pode nos surpreender, mas não quebrar o encanto. Para Jacques Demy, uma princesa, um poema, um helicóptero são todos entes imaginários.


Pele de Asno
Peau d'Âne
     Direção: Jacques Demy
Produção: França, 1970



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