|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CANNES 2004
Incluído de última hora na competição, documentário relata bastidores e intrigas da milionária indústria vinícola
Vinho ganha seu "Tiros em Columbine"
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
A verdade pode estar no vinho,
como reza o ditado latino, mas
nem sempre ela é dita. É o que
tenta mostrar o documentário
"Mondovino", de Jonathan Nossiter, exibido na competição do
Festival de Cannes, que deve dar
ao mundo do vinho a mesma dor
de cabeça que "Tiros em Columbine", de Michael Moore, deu à
indústria de armas dos EUA.
Há outra afinidade entre os dois
diretores: "Mondovino" e "Fahrenheit 911", este de Moore, são os
dois únicos documentários em
competição na mostra principal,
um fato inédito nos 57 anos do
festival. O longa de Nossiter deveria participar como hors-concours, mas teve sua condição alterada na terça-feira, pelo cada vez
mais imprevisível diretor artístico
Thierry Frémaux.
Sábia decisão. "Mondovino" é
uma delícia (ou encorpado, para
usar o jargão) pelo que relata de
bastidores, fofocas e intrigas de
uma indústria que só na Califórnia gira US$ 33 bilhões por ano (o
mesmo que fatura Hollywood).
Ninguém é poupado. Das grandes corporações, principalmente
americanas e francesas, acusadas
de "pasteurizar" o gosto do vinho,
tornando-o "fácil" e globalizado,
aos especialistas pagos a peso de
ouro, que as ajudam nisso, passando pelos temidos críticos das
publicações especializadas.
Aqui, sobra chumbo grosso para Robert Parker, da revista "Wine Spectator", conhecido no meio
como "The Nose" (o nariz), o
principal crítico do mundo, capaz
de com uma cotação fazer vinhedos ficarem milionários ou falirem da noite para o dia. Nossiter é
implacável com ele, sem mover
um músculo -aliás, o documentário, que visualmente lembra a
ficção "A Bruxa de Blair", segue
este estilo: o cineasta dá um pouco
de corda, e o entrevistado geralmente se enforca sozinho.
É o caso de Parker, entrevistado
em sua casa, em Maryland, que cita a si mesmo na terceira pessoa e
se vê como uma mistura do militante verde Ralph Nader e do jornalista político Bob Woodward
do vinho. No momento em que
ele declara isso, aliás, Nossiter
aponta sua câmera para o cachorro do enólogo e diz: "Opa, acho
que ele aprontou mais uma".
(É que, minutos antes, Parker
havia dito que seu cão sofre de flatulência e que às vezes tem ataques quando ele está degustando.
Imagine a relação que fará o dono
do próximo vinhedo que tiver seu
produto rebaixado pelo crítico...)
Filho de jornalista, Nossiter
cresceu na França, Itália, Grécia e
Índia. É consultor de cartas de vinhos em Nova York e escreve artigos sobre o tema. Dirigiu antes o
psicothriller "Signos e Desejos"
(2000), a comédia de humor negro "Domingo É Dia" (97) e o cult
"Resident Alien" (91), além do
documentário "Searching for Arthur" (97), sobre o diretor Arthur
Penn ("Bonnie & Clyde"). "Mondovino" começou por acaso numa viagem e pode se desdobrar
numa telessérie de dez episódios
de 60 minutos cada um.
Assim como Michael Moore, ele
é tendencioso ao defender sua tese -documentário não é jornalismo. Coloca de um lado pequenos produtores de vinho, os "terroiristas", que valorizam o "terroir" (a qualidade e as características do solo), e do outro as grandes corporações, que só pensam
em marketing e fazem (quase) tudo por uma boa colocação no
mercado. Mas é principalmente
na busca por personagens que
comprovem sua teoria que reside
o talento desse documentarista.
No primeiro caso destaca-se
Hubert de Montille, octogenário
que tem uma vinícola artesanal na
Borgonha (França) e rouba a cena
com pérolas como: "Existem os
vinhos-prostitutas, que se entregam logo a você". No segundo,
nomes como o Château Mouton-Rothschild, apontado pelos puristas como o McDonald's do Premier Grand Cru, e a santíssima
trindade do vale do Napa californiano, formada pelos Mondavi,
os Harlan e os Staglin, todos conservadores -uma das Staglin
chega a dizer sobre seus funcionários mexicanos: "Nós lhes damos
liberdade de expressão e, ocasionalmente, se o ano foi bom, camisetas e bonés com nossa marca".
Mas é do perfil de Michel Rolland, o mais requisitado e bem
pago especialista em vinhos do
mundo, um tipo raro que passa
metade do filme rindo e dizendo a
seus clientes: "É preciso fazer a
microoxigenação do vinho!", que
vem a principal denúncia. Nossiter insinua que a amizade de Rolland com Robert Parker tem utilidade comercial e funciona do seguinte jeito: o crítico avalia negativamente um vinho, o especialista
oferece seus serviços ao vinhedo
agora desesperado, e o crítico, depois, reavalia positivamente o
produto mudado pelo amigo.
De resto, tem até Brasil, ao mostrar a situação do vinho em Itália,
Argentina e Pernambuco, no vale
do São Francisco, único lugar do
mundo que, pela proximidade
com o Equador e a falta de umidade, pode dar duas safras por ano.
Texto Anterior: Mondo Cannes Próximo Texto: Drauzio Varella: Planejamento familiar Índice
|