São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CANNES 2004

Incluído de última hora na competição, documentário relata bastidores e intrigas da milionária indústria vinícola

Vinho ganha seu "Tiros em Columbine"

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

A verdade pode estar no vinho, como reza o ditado latino, mas nem sempre ela é dita. É o que tenta mostrar o documentário "Mondovino", de Jonathan Nossiter, exibido na competição do Festival de Cannes, que deve dar ao mundo do vinho a mesma dor de cabeça que "Tiros em Columbine", de Michael Moore, deu à indústria de armas dos EUA.
Há outra afinidade entre os dois diretores: "Mondovino" e "Fahrenheit 911", este de Moore, são os dois únicos documentários em competição na mostra principal, um fato inédito nos 57 anos do festival. O longa de Nossiter deveria participar como hors-concours, mas teve sua condição alterada na terça-feira, pelo cada vez mais imprevisível diretor artístico Thierry Frémaux.
Sábia decisão. "Mondovino" é uma delícia (ou encorpado, para usar o jargão) pelo que relata de bastidores, fofocas e intrigas de uma indústria que só na Califórnia gira US$ 33 bilhões por ano (o mesmo que fatura Hollywood).
Ninguém é poupado. Das grandes corporações, principalmente americanas e francesas, acusadas de "pasteurizar" o gosto do vinho, tornando-o "fácil" e globalizado, aos especialistas pagos a peso de ouro, que as ajudam nisso, passando pelos temidos críticos das publicações especializadas.
Aqui, sobra chumbo grosso para Robert Parker, da revista "Wine Spectator", conhecido no meio como "The Nose" (o nariz), o principal crítico do mundo, capaz de com uma cotação fazer vinhedos ficarem milionários ou falirem da noite para o dia. Nossiter é implacável com ele, sem mover um músculo -aliás, o documentário, que visualmente lembra a ficção "A Bruxa de Blair", segue este estilo: o cineasta dá um pouco de corda, e o entrevistado geralmente se enforca sozinho.
É o caso de Parker, entrevistado em sua casa, em Maryland, que cita a si mesmo na terceira pessoa e se vê como uma mistura do militante verde Ralph Nader e do jornalista político Bob Woodward do vinho. No momento em que ele declara isso, aliás, Nossiter aponta sua câmera para o cachorro do enólogo e diz: "Opa, acho que ele aprontou mais uma".
(É que, minutos antes, Parker havia dito que seu cão sofre de flatulência e que às vezes tem ataques quando ele está degustando. Imagine a relação que fará o dono do próximo vinhedo que tiver seu produto rebaixado pelo crítico...)
Filho de jornalista, Nossiter cresceu na França, Itália, Grécia e Índia. É consultor de cartas de vinhos em Nova York e escreve artigos sobre o tema. Dirigiu antes o psicothriller "Signos e Desejos" (2000), a comédia de humor negro "Domingo É Dia" (97) e o cult "Resident Alien" (91), além do documentário "Searching for Arthur" (97), sobre o diretor Arthur Penn ("Bonnie & Clyde"). "Mondovino" começou por acaso numa viagem e pode se desdobrar numa telessérie de dez episódios de 60 minutos cada um.
Assim como Michael Moore, ele é tendencioso ao defender sua tese -documentário não é jornalismo. Coloca de um lado pequenos produtores de vinho, os "terroiristas", que valorizam o "terroir" (a qualidade e as características do solo), e do outro as grandes corporações, que só pensam em marketing e fazem (quase) tudo por uma boa colocação no mercado. Mas é principalmente na busca por personagens que comprovem sua teoria que reside o talento desse documentarista.
No primeiro caso destaca-se Hubert de Montille, octogenário que tem uma vinícola artesanal na Borgonha (França) e rouba a cena com pérolas como: "Existem os vinhos-prostitutas, que se entregam logo a você". No segundo, nomes como o Château Mouton-Rothschild, apontado pelos puristas como o McDonald's do Premier Grand Cru, e a santíssima trindade do vale do Napa californiano, formada pelos Mondavi, os Harlan e os Staglin, todos conservadores -uma das Staglin chega a dizer sobre seus funcionários mexicanos: "Nós lhes damos liberdade de expressão e, ocasionalmente, se o ano foi bom, camisetas e bonés com nossa marca".
Mas é do perfil de Michel Rolland, o mais requisitado e bem pago especialista em vinhos do mundo, um tipo raro que passa metade do filme rindo e dizendo a seus clientes: "É preciso fazer a microoxigenação do vinho!", que vem a principal denúncia. Nossiter insinua que a amizade de Rolland com Robert Parker tem utilidade comercial e funciona do seguinte jeito: o crítico avalia negativamente um vinho, o especialista oferece seus serviços ao vinhedo agora desesperado, e o crítico, depois, reavalia positivamente o produto mudado pelo amigo.
De resto, tem até Brasil, ao mostrar a situação do vinho em Itália, Argentina e Pernambuco, no vale do São Francisco, único lugar do mundo que, pela proximidade com o Equador e a falta de umidade, pode dar duas safras por ano.


Texto Anterior: Mondo Cannes
Próximo Texto: Drauzio Varella: Planejamento familiar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.