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Comentário
Longa faz uma parábola do nosso tempo
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um filme com lugares-comuns é ruim, mas
um filme cheio de lugares-comuns é um clássico.
Assim são as obras de Dan
Brown.
Em "Anjos e Demônios", pode-se aprender tanto sobre a
Igreja Católica, tema central do
filme, quanto sobre a Antiguidade em "A Múmia" (1999) ou
com Indiana Jones.
Existiram múmias, pirâmides, a Arca da Aliança -e paramos por aí, quase todo o resto é
reconhecidamente inventado.
Galileu existiu, teve problemas
com a igreja, existem sociedades secretas -e também paramos por aí, quase todo o resto é
inventado. Aqui, quase tudo
tem uma base real, mas quase
nada corresponde à realidade.
Realidade e ficção se misturam de tal forma que não se sabe onde uma começa e outra
termina -e parte do sucesso
vem daí. A Igreja Católica de
Dan Brown é uma caricatura
grotesca daquela real, mas para
mostrar isso são necessárias
tantas páginas de dados históricos quantas têm os seus livros.
No Brasil, por exemplo, o teólogo Pedro Vasconcellos, professor da PUC-SP, escreveu "O
Código Da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos"
(Paulinas) só para abordar uma
parte do problema.
Somos saturados de informações e contrainformações até
não conseguirmos discernir o
que aconteceu do que não
aconteceu. Essa avalanche de
informações não nos torna
mais críticos, mas faz com que
ideias preconcebidas e uma
confiança cega nos meios de
comunicação se tornem os critérios de verdade. É um processo gerador de preconceito e
obscurantismo, que leva à
crença de que a igreja real é
igual à do filme.
Com sua notável capacidade
de perceber o que o público
quer ver e ouvir, Brown -mais
do que mostrar quem é a igreja- mostra quem somos nós.
Essa Igreja Católica "de mentirinha" é uma projeção de nossas incertezas, nossos preconceitos, nossos medos e nossa
obstinada nostalgia do totalmente outro, do ser que se esconde -na luz ou nas trevas- a
nos repetir insistentemente
que nossa vida é mais do que
vemos em nosso singelo cotidiano -e aí reside outra boa
parte de seu sucesso.
Paranoia
Ao mesmo tempo, paira sobre a trama essa paranoia atual
que em todos os lados vê conspirações, sociedades secretas e
poderes ocultos. Paranoia talvez bem justificada pelos cartéis de drogas e pelo terrorismo, mas nem por isso menos
paranoica.
O homem primitivo via nas
catástrofes naturais a presença
maligna e aterrorizante de um
poder sobrenatural, o homem
de hoje se sente aterrorizado
pelo poder oculto nas estruturas de sua sociedade. Esse é o
grande tema da ficção atual: a
luta do homem comum contra
um poder oculto, que a todos
domina e controla sem que ninguém perceba.
O filme se assenta num tripé:
essa igreja contraditória, confuso objeto de desejo por seus
mistérios e de desprezo por
seus erros; esses poderes ocultos, ameaças perenes à nossa
segurança e liberdade; e uma
ciência prometeica, que com
seu afã por trazer bem e poder
ao homem acaba por abrir a
caixa que contém os males do
mundo. Essa é a fórmula do sucesso de Dan Brown.
"Anjos e Demônios" é para
quem quer se divertir sentado
à soleira da porta do mistério
do mundo. O único perigo é o
de querer usá-lo para atravessar a porta.
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO , sociólogo
e biólogo, é coordenador de Projetos do Núcleo
Fé e Cultura da PUC-SP.
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