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TEATRO/CRÍTICA
Sob olhar estrangeiro, Bishop define Brasil
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"Um Porto para Elizabeth
Bishop" busca definir o
Brasil. Em geral, tal tarefa em teatro resulta ora no endosso apaixonado de nossas qualidades e defeitos (como em Nelson Rodrigues e Antunes Filho, por exemplo), ora na denúncia que inquieta a platéia com o que não poderia
ser tolerado (Plínio Marcos e Denise Stocklos). Nesta montagem,
tenta-se uma terceira via, ao
apoiar a análise na imparcialidade
do olhar estrangeiro.
Aqui, um olhar duplamente privilegiado. Bishop (1911-1979)
acompanha a história do Brasil,
das vésperas do suicídio de Vargas aos primeiros anos do regime
militar, através de cartas e poemas, com um estilo despojado e
sintético, ao mesmo tempo distanciado e enternecido, em muito
semelhante ao de Drummond (o
que ela mesma parece pensar
quando o encontra, o que revelaria que sempre há algo de estrangeiro na condição de poeta).
O texto se destaca, no entanto,
por não se limitar a uma elegia à
grande poeta americana, a uma
colagem reverente de poemas.
Marta Goés acompanha sua personagem nos 15 anos que viveu
no Rio, da chegada ao porto de
Santos ao "exílio" no porto de
Boston, e leva a platéia a uma empatia constante, primeiro em relação a seu estranhamento (é desarmante constatar como muitos se
reconhecem no menosprezo à desordem terceiro-mundista e na
saudade de Nova York) e logo
com sua fragilidade (passamos a
torcer para que ao menos tenhamos sido bons anfitriões, cuidando de sua intoxicação por caju,
mostrando nossas belezas naturais).
Assim, este é também um monólogo sobre a solidão. A fragilidade de Elizabeth vem não tanto
da sua condição de estrangeira ou
homossexual (o que aparece raramente enquanto autoquestionamento), mas na de artista, com
seu medo de ser desmascarada
enquanto "fraude", suas lembranças amargas de infância e a
dura disciplina de escrever, à qual
escapa às vezes pelo alcoolismo,
em um retrato sem retoques.
Uma partitura complexa e fecunda então, que teve a felicidade
de ser composta para uma atriz
que parece atingir sua maturidade plena. Regina Braga domina
com tranquilidade todas as sutilezas requeridas: a perda progressiva do sotaque, que realça o sabor
de cada palavra ao tingir de exótico nosso cotidiano; a entrega do
corpo ao medo, ao álcool, ao deslumbre feliz; a riqueza de contrastes no ritmo, quando o grito diante da morte logo dá lugar ao relato
contido do suicídio de Lota Soares, sua grande paixão.
A direção de José Possi Neto
tem o mérito de deixar o texto respirar, mas nem sempre resiste à
tentação de se sobrepor a ele. Projeções de estrelas e fogos de artifício ofuscam um denso poema de
amor, e a conclusão -que propõe uma discussão interessante
sobre a perda do sentimento de
felicidade no Brasil- é atropelada pela ufanista vista da baía de
Guanabara, como se a palavra final devesse ser o surrado "orgulho de ser brasileiro".
Não é seguro o porto que recebeu Elizabeth Bishop. Mas a sua
lucidez de poeta nos ajuda a recordar uma utopia que se perdeu
no golpe militar e que agora buscamos de volta.
Um Porto para Elizabeth Bishop
Direção: José Possi Neto
Texto: Marta Góes
Com: Regina Braga
Onde: Sesc Consolação - teatro Sesc
Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila
Buarque, tel. 0/xx/11/256-2281); qui. às
21h, até 5/8.
Ingressos: de R$ 10 a R$ 20.
www.sescsp.com.br
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