São Paulo, sexta-feira, 15 de junho de 2001

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TEATRO/CRÍTICA

Sob olhar estrangeiro, Bishop define Brasil

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Um Porto para Elizabeth Bishop" busca definir o Brasil. Em geral, tal tarefa em teatro resulta ora no endosso apaixonado de nossas qualidades e defeitos (como em Nelson Rodrigues e Antunes Filho, por exemplo), ora na denúncia que inquieta a platéia com o que não poderia ser tolerado (Plínio Marcos e Denise Stocklos). Nesta montagem, tenta-se uma terceira via, ao apoiar a análise na imparcialidade do olhar estrangeiro.
Aqui, um olhar duplamente privilegiado. Bishop (1911-1979) acompanha a história do Brasil, das vésperas do suicídio de Vargas aos primeiros anos do regime militar, através de cartas e poemas, com um estilo despojado e sintético, ao mesmo tempo distanciado e enternecido, em muito semelhante ao de Drummond (o que ela mesma parece pensar quando o encontra, o que revelaria que sempre há algo de estrangeiro na condição de poeta).
O texto se destaca, no entanto, por não se limitar a uma elegia à grande poeta americana, a uma colagem reverente de poemas. Marta Goés acompanha sua personagem nos 15 anos que viveu no Rio, da chegada ao porto de Santos ao "exílio" no porto de Boston, e leva a platéia a uma empatia constante, primeiro em relação a seu estranhamento (é desarmante constatar como muitos se reconhecem no menosprezo à desordem terceiro-mundista e na saudade de Nova York) e logo com sua fragilidade (passamos a torcer para que ao menos tenhamos sido bons anfitriões, cuidando de sua intoxicação por caju, mostrando nossas belezas naturais).
Assim, este é também um monólogo sobre a solidão. A fragilidade de Elizabeth vem não tanto da sua condição de estrangeira ou homossexual (o que aparece raramente enquanto autoquestionamento), mas na de artista, com seu medo de ser desmascarada enquanto "fraude", suas lembranças amargas de infância e a dura disciplina de escrever, à qual escapa às vezes pelo alcoolismo, em um retrato sem retoques.
Uma partitura complexa e fecunda então, que teve a felicidade de ser composta para uma atriz que parece atingir sua maturidade plena. Regina Braga domina com tranquilidade todas as sutilezas requeridas: a perda progressiva do sotaque, que realça o sabor de cada palavra ao tingir de exótico nosso cotidiano; a entrega do corpo ao medo, ao álcool, ao deslumbre feliz; a riqueza de contrastes no ritmo, quando o grito diante da morte logo dá lugar ao relato contido do suicídio de Lota Soares, sua grande paixão.
A direção de José Possi Neto tem o mérito de deixar o texto respirar, mas nem sempre resiste à tentação de se sobrepor a ele. Projeções de estrelas e fogos de artifício ofuscam um denso poema de amor, e a conclusão -que propõe uma discussão interessante sobre a perda do sentimento de felicidade no Brasil- é atropelada pela ufanista vista da baía de Guanabara, como se a palavra final devesse ser o surrado "orgulho de ser brasileiro".
Não é seguro o porto que recebeu Elizabeth Bishop. Mas a sua lucidez de poeta nos ajuda a recordar uma utopia que se perdeu no golpe militar e que agora buscamos de volta.


Um Porto para Elizabeth Bishop
   
Direção: José Possi Neto
Texto: Marta Góes
Com: Regina Braga
Onde: Sesc Consolação - teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 0/xx/11/256-2281); qui. às 21h, até 5/8.
Ingressos: de R$ 10 a R$ 20. www.sescsp.com.br




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