|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"A TRAGÉDIA DE HAMLET"/CRÍTICA
Personagem de Shakespeare mata a metáfora
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Palavras, palavras. Brook
atinge o auge do despojamento neste Hamlet minimalista:
tapetes estendidos multiplicam o
palco; erguidos, criam as cortinas-armadilhas, e o espaço está livre para que se escute os atores.
Sobretudo William Nadylam.
Seu Hamlet está só com seus botões, que aciona meticulosamente, hesitando entre o fascínio pela
"máquina corpórea" e o desejo de
se dissolver em silêncio. Entre o
polegar e o indicador, escolhe
suas palavras, marcando-as com
uma subida de tom; e quando o
abaixa, após uma pausa sombria,
os piores pressentimentos varrem
a platéia. A sensação é que se ouve
o texto pela primeira vez.
Mas o perfeito domínio da língua não basta. Comovido pela
prosódia do ator da corte, que fala
em uma linguagem imaginária,
segundo um antigo recurso de
Brook, Hamlet rejeita imitá-lo:
não é a técnica que conta, mas o
sentido; a língua, e não a boca, segundo a lição de Mestre Yoshi Oida. Quando anuncia ao rei o título
da peça que irá desmascará-lo, "a
ratoeira", logo esmaga com o pé
essa piada amarga com o teatro,
armadilha do desejo: é só uma
metáfora, e as metáforas já estão
corrompidas, segundo Brook.
Em sua busca pela pureza, William tem um seguro aliado em
Emile Mbo, que faz tanto o espectro do pai como o Rei Cláudio. Feroz quando necessário, para criar
o contraponto com a inconsequência clown do sobrinho a
quem usurpou o poder, Mbo sabe
se tornar frágil diante da culpa,
quebrando o maniqueísmo, o que
torna plausível a hesitação de
Hamlet. Por outro lado, Sotigui
Koyaté faz um Polônio com uma
ingenuidade enternecedora, tornando claro que é por acaso que
ele é morto por Hamlet.
Pena que, diante de tão intensas
melancolias e humores negros,
soem tão "brancas" as leituras da
Rainha Gertrudes de Lilo Baur e a
da Ofélia de Véronique Sacri. Evitando cair em uma romantização
indevida, acabam cedendo ao
tom "clássico" e, embora belas,
tornam-se frágeis e opacas.
Tanta delicadeza ralenta a peça
e tira o impulso de vingança de
Laertes. Rachid Djaïdani, que fazia uma eficiente escada para o
polivalente Bruce Myers, que é
brilhante tanto na intensidade do
ator da corte quando no humor
de Rosencrantz, mostra-se imaturo para se contrapor a Hamlet.
Sua voz nasalada faz de Laertes
um menino mimado, no oposto
do belo timbre de Antonin Stahly,
cuja concentração de músico costura os ritmos de forma precisa.
A chegada dos coveiros faz a peça voltar aos trilhos, mas o que
prevalece é a desolação do tom final, o confronto com o nada.
Hamlet não tem prazer ao consumir sua vingança. Não fosse a
adaptação -que já deslocara inteligentemente o "ser ou não
ser"- fazer a peça acabar com
sua primeira fala ("Quem vem
lá?"), poderia se pensar que Brook
cede ao pessimismo.
Mas não: renuncia apenas à
obra-prima, à leitura definitiva.
Seu Hamlet é uma retomada pelo
grau zero da leitura de Shakespeare. Não há mais efeitos à disposição dos histriões. O que surge no
horizonte, depois do silêncio, é o
teatro sob inteira responsabilidade dos atores. Um futuro brilhante, se este ator for Nadylam.
A Tragédia de Hamlet
Adaptação e direção: Peter Brook
Onde: Sesc Vila Mariana - teatro (r.
Pelotas, 141, SP, tel. 0/xx/11/5080-3000)
Quando: hoje, às 21h, e amanhã, às 18h
(ingressos esgotados)
Onde: teatro Carlos Gomes (pça.
Tiradentes, s/nš, Rio, tel. 0/xx/21/2232-8701)
Quando: de 20 a 22 de junho, às 21h
Quanto: R$ 15
Texto Anterior: Ritmo moderniza clássico de Cervantes Próximo Texto: Livros e lançamentos: Obra é um exercício de distanciamento Índice
|