São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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"A TRAGÉDIA DE HAMLET"/CRÍTICA

Personagem de Shakespeare mata a metáfora

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Palavras, palavras. Brook atinge o auge do despojamento neste Hamlet minimalista: tapetes estendidos multiplicam o palco; erguidos, criam as cortinas-armadilhas, e o espaço está livre para que se escute os atores.
Sobretudo William Nadylam. Seu Hamlet está só com seus botões, que aciona meticulosamente, hesitando entre o fascínio pela "máquina corpórea" e o desejo de se dissolver em silêncio. Entre o polegar e o indicador, escolhe suas palavras, marcando-as com uma subida de tom; e quando o abaixa, após uma pausa sombria, os piores pressentimentos varrem a platéia. A sensação é que se ouve o texto pela primeira vez.
Mas o perfeito domínio da língua não basta. Comovido pela prosódia do ator da corte, que fala em uma linguagem imaginária, segundo um antigo recurso de Brook, Hamlet rejeita imitá-lo: não é a técnica que conta, mas o sentido; a língua, e não a boca, segundo a lição de Mestre Yoshi Oida. Quando anuncia ao rei o título da peça que irá desmascará-lo, "a ratoeira", logo esmaga com o pé essa piada amarga com o teatro, armadilha do desejo: é só uma metáfora, e as metáforas já estão corrompidas, segundo Brook.
Em sua busca pela pureza, William tem um seguro aliado em Emile Mbo, que faz tanto o espectro do pai como o Rei Cláudio. Feroz quando necessário, para criar o contraponto com a inconsequência clown do sobrinho a quem usurpou o poder, Mbo sabe se tornar frágil diante da culpa, quebrando o maniqueísmo, o que torna plausível a hesitação de Hamlet. Por outro lado, Sotigui Koyaté faz um Polônio com uma ingenuidade enternecedora, tornando claro que é por acaso que ele é morto por Hamlet.
Pena que, diante de tão intensas melancolias e humores negros, soem tão "brancas" as leituras da Rainha Gertrudes de Lilo Baur e a da Ofélia de Véronique Sacri. Evitando cair em uma romantização indevida, acabam cedendo ao tom "clássico" e, embora belas, tornam-se frágeis e opacas.
Tanta delicadeza ralenta a peça e tira o impulso de vingança de Laertes. Rachid Djaïdani, que fazia uma eficiente escada para o polivalente Bruce Myers, que é brilhante tanto na intensidade do ator da corte quando no humor de Rosencrantz, mostra-se imaturo para se contrapor a Hamlet. Sua voz nasalada faz de Laertes um menino mimado, no oposto do belo timbre de Antonin Stahly, cuja concentração de músico costura os ritmos de forma precisa.
A chegada dos coveiros faz a peça voltar aos trilhos, mas o que prevalece é a desolação do tom final, o confronto com o nada. Hamlet não tem prazer ao consumir sua vingança. Não fosse a adaptação -que já deslocara inteligentemente o "ser ou não ser"- fazer a peça acabar com sua primeira fala ("Quem vem lá?"), poderia se pensar que Brook cede ao pessimismo.
Mas não: renuncia apenas à obra-prima, à leitura definitiva. Seu Hamlet é uma retomada pelo grau zero da leitura de Shakespeare. Não há mais efeitos à disposição dos histriões. O que surge no horizonte, depois do silêncio, é o teatro sob inteira responsabilidade dos atores. Um futuro brilhante, se este ator for Nadylam.



A Tragédia de Hamlet
   
Adaptação e direção: Peter Brook
Onde: Sesc Vila Mariana - teatro (r. Pelotas, 141, SP, tel. 0/xx/11/5080-3000)
Quando: hoje, às 21h, e amanhã, às 18h (ingressos esgotados)
Onde: teatro Carlos Gomes (pça. Tiradentes, s/nš, Rio, tel. 0/xx/21/2232-8701)
Quando: de 20 a 22 de junho, às 21h
Quanto: R$ 15



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