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LIVROS/LANÇAMENTOS
"DIÁRIO DE TRABALHO - VOLUME 1 (1938-1941)"
Sai em julho primeira parte de anotações do alemão Bertolt Brecht
Obra é um exercício de distanciamento
CHRISTINE RÖHRIG
ESPECIAL PARA A FOLHA
"É mentira que os mortos
estejam mortos." Com essas palavras o cineasta alemão
Alexander Kluge iniciou o elogio
fúnebre ao também amigo e dramaturgo Heiner Müller quando
de sua morte em 1995. Retomo
aqui suas palavras por considerar
que Bertolt Brecht é o exemplo vivo-morto (?) delas. No Brasil, somente no primeiro semestre deste
ano foram muitas as edições de
obras, encenações de peças, audições de músicas desse alemão que
morreu já há 45 anos. E as publicações continuam, agora com a
oportuna e necessária edição do
primeiro volume de seu "Diário
de Trabalho" pela editora Rocco.
Desde sua infância, Brecht
(1898-1956) fez anotações diárias
que deram origem a três tipos de
escritos autobiográficos distintos,
como explica Werner Mittenzwei
em seu posfácio à edição alemã do
"Diário de Trabalho". São elas: a
Agenda (Notizbücher), onde anotava idéias, pensamentos, planos,
esboços, e que servia também para marcar compromissos; os Diários (Tagebücher), que escreveu
entre 1913 e 1922 e que mais se assemelhavam a uma autobiografia,
contendo anotações pessoais, íntimas, e onde tentava entender
suas qualidades específicas e fraquezas de caráter; e, por último, o
Diário de Trabalho (Arbeitsjournal), que teve início em 1938 e se
estendeu até 1955, quase até o final de sua vida.
As anotações do "Diário de Trabalho", apesar de se iniciarem
com registros e fotos de família,
pertencem ao gênero das reflexões que Brecht escreveu especialmente sobre dificuldades nas
produções, busca de soluções e
esforços. Revelam um exercício
do autor em manter-se distante
de si próprio e do privado e trazem uma mistura característica
de relatos de conversas, contatos
com amigos e intelectuais, comentários sobre a política contemporânea, avaliações de reflexões alheias de caráter filosófico e
descrições da região em que se encontrava na época.
Após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, Brecht deixa a Alemanha e, depois de passar por
Praga, Viena, Suíça e Paris, é forçado a exilar-se, acompanhado
dos filhos e da mulher, a atriz Helen Weigel, na Dinamarca, onde
permanece até 1939. Com o início
da Segunda Guerra Mundial, em
1º de setembro de 1939, o diário
passa a valer como documento
"oficial", escrito em forma de artigo e ilustrado, acrescido de comentário crítico-explicativo.
Em 8/10/1940, Brecht escreve:
"Que riqueza de material para o
teatro há nas fotos dos semanários ilustrados fascistas! Esses canastrões compreendem a arte do
teatro épico, dando a acontecimentos banais um ar de momento histórico". Ao comentário seguem-se recortes de jornais com
fotos de Hitler à mesa com uma
mulher, servindo-se de um prato
e comendo. Abaixo da imagem,
Brecht anota: "Vejam: prefiro
sempre o trivial variado/ Eu que
não me escravizo a desejos sensuais/ Salvo o de ter o mundo a
meus pés, dominado./ De vocês
quero só seus filhos. Nada mais".
Brecht procura dar voz aos recortes diários de notícias de jornais e imagens que ele coleciona
sistematicamente, tornando o
"Diário de Trabalho", que muitos
críticos na Alemanha afirmam ter
sido escrito desde o início com a
intenção de publicação, um documento de época sem precedentes
na literatura alemã. A maior parte
dos registros, quando não é descritiva, tem o caráter de diálogo. O
texto torna-se, assim, uma fonte
inesgotável de dados para as
obras cuja produção se encontra
ali registrada. Desse modo, não é
possível analisar a obra de Brecht
sem considerar esse "Diário de
Trabalho", que se tornou, depois
de sua publicação em 1973, uma
das mais citadas do autor.
A edição ora apresentada divide-se em três volumes. O primeiro deles, agora lançado, com tradução de Ronaldo Guarany e José
Laurenio de Melo, compreende
os anos de 1938 a 1941, em que
Brecht passou pela Dinamarca,
Suécia e Finlândia, coincidindo
com o período em que escreve as
peças "A Vida de Galileu", "Mãe
Coragem e Seus Filhos", "Terror e
Miséria no Terceiro Reich", "Senhor Puntilla e Seu Criado Matti"
e "A Alma Boa de Setsuan".
Além das peças, vários poemas
nascem do exílio, nos quais
Brecht leva às últimas consequências suas formulações sobre a utilidade da poesia. Os poemas são,
por assim dizer, desentranhados
do real. O segundo volume corresponde aos anos de 1941 a 1947,
na América, e o terceiro, de 1947 a
1955, quando de uma temporada
na Suíça e do retorno a Berlim.
Uma mostra do que se encontra
nesse primeiro volume: durante o
exílio na Suécia, com as consecutivas vitórias de Hitler, Brecht escreve em 19/8/1940 queixando-se
do isolamento em relação à produção. "Quando escuto as notícias no rádio pela manhã (...), então o dia antinatural começa, não
sobre uma nota dissonante, mas
sobre nota nenhuma. Este é o
tempo nos intervalos." Em 21/4/
1941, comenta: "A cada notícia
das vitórias de Hitler, minha importância como escritor diminui.
Nem mesmo Olsoni, livreiro e crítico de Helsinque, encontra tempo para ler minha peça".
São inúmeras as passagens do
"Diário" que merecem ser citadas, e não resisto à tentação de reproduzir mais uma, até para ilustrar a diversidade de temas abordados. Em 12/8/1938, ele escreve:
"Nós alemães temos materialismo sem sensualidade. (...) Em
nossa literatura essa desconfiança
da vitalidade do corpo dá para ser
sentida em toda parte. Nossos heróis cultivam a sociabilidade, mas
não comem; nossas mulheres têm
sentimentos, mas não têm nádegas. Para compensar isso, nossos
velhos falam como se ainda tivessem todos os dentes".
Foi Heiner Müller quem disse
que quando um século se encerra
é preciso que se faça um balanço,
não daqueles balanços constituídos de números, como se faz no
comércio, mas de metáforas, recipientes, garrafas, caçarolas, jarros, cantis, baldes, nos quais a experiência humana possa ser
transportada pelo deserto.
É nesse sentido, pois, que se pode afirmar sem medo de errar que
hoje, diante de um novo século, o
"Diário de Trabalho" de Brecht é
desses contêineres que trazemos
repletos, onde cada utensílio é
pleno de atualidade e de senhas
para a compreensão da arte e do
homem contemporâneos.
Christine Röhrig coordenou a tradução
do "Teatro Completo" de Brecht
Diário de Trabalho - Volume 1
(1938-1941)
Autor: Bertolt Brecht
Tradução: Ronaldo Guarany e José
Laurenio de Melo
Lançamento: editora Rocco (somente a
partir de julho)
Quanto: preço não definido (216 págs.)
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