São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"DIÁRIO DE TRABALHO - VOLUME 1 (1938-1941)"

Sai em julho primeira parte de anotações do alemão Bertolt Brecht

Obra é um exercício de distanciamento

CHRISTINE RÖHRIG
ESPECIAL PARA A FOLHA

"É mentira que os mortos estejam mortos." Com essas palavras o cineasta alemão Alexander Kluge iniciou o elogio fúnebre ao também amigo e dramaturgo Heiner Müller quando de sua morte em 1995. Retomo aqui suas palavras por considerar que Bertolt Brecht é o exemplo vivo-morto (?) delas. No Brasil, somente no primeiro semestre deste ano foram muitas as edições de obras, encenações de peças, audições de músicas desse alemão que morreu já há 45 anos. E as publicações continuam, agora com a oportuna e necessária edição do primeiro volume de seu "Diário de Trabalho" pela editora Rocco.
Desde sua infância, Brecht (1898-1956) fez anotações diárias que deram origem a três tipos de escritos autobiográficos distintos, como explica Werner Mittenzwei em seu posfácio à edição alemã do "Diário de Trabalho". São elas: a Agenda (Notizbücher), onde anotava idéias, pensamentos, planos, esboços, e que servia também para marcar compromissos; os Diários (Tagebücher), que escreveu entre 1913 e 1922 e que mais se assemelhavam a uma autobiografia, contendo anotações pessoais, íntimas, e onde tentava entender suas qualidades específicas e fraquezas de caráter; e, por último, o Diário de Trabalho (Arbeitsjournal), que teve início em 1938 e se estendeu até 1955, quase até o final de sua vida.
As anotações do "Diário de Trabalho", apesar de se iniciarem com registros e fotos de família, pertencem ao gênero das reflexões que Brecht escreveu especialmente sobre dificuldades nas produções, busca de soluções e esforços. Revelam um exercício do autor em manter-se distante de si próprio e do privado e trazem uma mistura característica de relatos de conversas, contatos com amigos e intelectuais, comentários sobre a política contemporânea, avaliações de reflexões alheias de caráter filosófico e descrições da região em que se encontrava na época.
Após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, Brecht deixa a Alemanha e, depois de passar por Praga, Viena, Suíça e Paris, é forçado a exilar-se, acompanhado dos filhos e da mulher, a atriz Helen Weigel, na Dinamarca, onde permanece até 1939. Com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1º de setembro de 1939, o diário passa a valer como documento "oficial", escrito em forma de artigo e ilustrado, acrescido de comentário crítico-explicativo.
Em 8/10/1940, Brecht escreve: "Que riqueza de material para o teatro há nas fotos dos semanários ilustrados fascistas! Esses canastrões compreendem a arte do teatro épico, dando a acontecimentos banais um ar de momento histórico". Ao comentário seguem-se recortes de jornais com fotos de Hitler à mesa com uma mulher, servindo-se de um prato e comendo. Abaixo da imagem, Brecht anota: "Vejam: prefiro sempre o trivial variado/ Eu que não me escravizo a desejos sensuais/ Salvo o de ter o mundo a meus pés, dominado./ De vocês quero só seus filhos. Nada mais".
Brecht procura dar voz aos recortes diários de notícias de jornais e imagens que ele coleciona sistematicamente, tornando o "Diário de Trabalho", que muitos críticos na Alemanha afirmam ter sido escrito desde o início com a intenção de publicação, um documento de época sem precedentes na literatura alemã. A maior parte dos registros, quando não é descritiva, tem o caráter de diálogo. O texto torna-se, assim, uma fonte inesgotável de dados para as obras cuja produção se encontra ali registrada. Desse modo, não é possível analisar a obra de Brecht sem considerar esse "Diário de Trabalho", que se tornou, depois de sua publicação em 1973, uma das mais citadas do autor.
A edição ora apresentada divide-se em três volumes. O primeiro deles, agora lançado, com tradução de Ronaldo Guarany e José Laurenio de Melo, compreende os anos de 1938 a 1941, em que Brecht passou pela Dinamarca, Suécia e Finlândia, coincidindo com o período em que escreve as peças "A Vida de Galileu", "Mãe Coragem e Seus Filhos", "Terror e Miséria no Terceiro Reich", "Senhor Puntilla e Seu Criado Matti" e "A Alma Boa de Setsuan".
Além das peças, vários poemas nascem do exílio, nos quais Brecht leva às últimas consequências suas formulações sobre a utilidade da poesia. Os poemas são, por assim dizer, desentranhados do real. O segundo volume corresponde aos anos de 1941 a 1947, na América, e o terceiro, de 1947 a 1955, quando de uma temporada na Suíça e do retorno a Berlim.
Uma mostra do que se encontra nesse primeiro volume: durante o exílio na Suécia, com as consecutivas vitórias de Hitler, Brecht escreve em 19/8/1940 queixando-se do isolamento em relação à produção. "Quando escuto as notícias no rádio pela manhã (...), então o dia antinatural começa, não sobre uma nota dissonante, mas sobre nota nenhuma. Este é o tempo nos intervalos." Em 21/4/ 1941, comenta: "A cada notícia das vitórias de Hitler, minha importância como escritor diminui. Nem mesmo Olsoni, livreiro e crítico de Helsinque, encontra tempo para ler minha peça".
São inúmeras as passagens do "Diário" que merecem ser citadas, e não resisto à tentação de reproduzir mais uma, até para ilustrar a diversidade de temas abordados. Em 12/8/1938, ele escreve: "Nós alemães temos materialismo sem sensualidade. (...) Em nossa literatura essa desconfiança da vitalidade do corpo dá para ser sentida em toda parte. Nossos heróis cultivam a sociabilidade, mas não comem; nossas mulheres têm sentimentos, mas não têm nádegas. Para compensar isso, nossos velhos falam como se ainda tivessem todos os dentes".
Foi Heiner Müller quem disse que quando um século se encerra é preciso que se faça um balanço, não daqueles balanços constituídos de números, como se faz no comércio, mas de metáforas, recipientes, garrafas, caçarolas, jarros, cantis, baldes, nos quais a experiência humana possa ser transportada pelo deserto.
É nesse sentido, pois, que se pode afirmar sem medo de errar que hoje, diante de um novo século, o "Diário de Trabalho" de Brecht é desses contêineres que trazemos repletos, onde cada utensílio é pleno de atualidade e de senhas para a compreensão da arte e do homem contemporâneos.


Christine Röhrig coordenou a tradução do "Teatro Completo" de Brecht

Diário de Trabalho - Volume 1 (1938-1941)
    
Autor: Bertolt Brecht
Tradução: Ronaldo Guarany e José Laurenio de Melo
Lançamento: editora Rocco (somente a partir de julho)
Quanto: preço não definido (216 págs.)


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