São Paulo, sábado, 15 de junho de 2002

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"AS METAMORFOSES"

Mendes cria imagens dissonantes

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"As Metamorfoses ", escritas por Murilo Mendes na aurora da Segunda Guerra Mundial, poucos anos após "Poesia em Pânico", atraíram a atenção de críticos importantes, de Lauro Escorel a Antonio Candido.
Escorel aponta o caráter "musical" da obra, explicando em seguida que essa marca "não nasce do ritmo, da harmonia ou da cadência do verso". De fato. A despeito da dedicatória a Mozart, não há nada de muito tonal aqui. Ainda supondo que o efeito das "Metamorfoses" não sejam as consonâncias, mas as dissonâncias, é preciso concordar que mesmo estas não se estabelecem em nível auditivo, mas em termos de imagens e de significados.
Mendes cria um mundo de imagens em conflito, de recombinação de sentidos. É um mundo em que vemos pássaros de quatro folhas, rosas migradoras, buquê de nuvens; onde árvores se abraçam, pastores apascentam pianos e os sonhos têm mãos e pés. Não à toa, Candido comparou o impacto dessas imagens no terreno da lógica a que estamos acostumados aos quadros metafísicos de De Chirico e Salvador Dalí.
O poeta subverte o sentido das palavras, causando em nós um efeito de estranheza que só se desfaz quando aceitamos a nova estrutura significativa de seu discurso, mais afeita ao âmbito do inconsciente e dos sonhos. Quando sonhamos, nossos sonhos nos parecem normais; só quando acordamos é que os achamos incongruentes. Mendes propõe que aceitemos o sonho no estado de vigília.
Pouco se discutiu a correspondência entre esta obra e sua antecessora, o longo poema homônimo de Ovídio. Sobre o mineiro, costuma-se mencionar, à guisa de justificativa para o empréstimo do título, a cadeia de significados mutantes suscitada por sua obra, na qual uma coisa se transforma incessantemente em outra, numa metamorfose contínua. É o caso dos primeiros versos, em que o poeta se metamorfoseia em nuvem, pássaro e estátua.
Mas há algo além dessas transfigurações e das alusões que Mendes faz a ninfas, a deuses e ao Minotauro. Um ponto em comum entre os dois poetas é que ambos aludem a um estado de inocência original, onde o "real é fábula" e é possível comunicar-se "com os deuses" (Mendes), ou onde as palavras "eram simples, a alma sincera" e não havia "regras" e "opressão" (Ovídio). O poeta romano chamou a era de pureza perdida de "Idade do Ouro", anterior ao reinado de Júpiter. Mendes também associa esse período a época remotíssima: "o ar puro e a inocência/ Estão mais recuados do que os deuses gregos".
Seguindo a Idade de Ouro e de Prata, veio a Idade de Bronze, em que a "progênie belicosa" está pronta para a "fúria sangrenta" (Ovídio). Enquanto o latino menciona uma humanidade que se desprendeu dos "laços morais" e o hóspede é assassinado por seu anfitrião, o mineiro fala de "gases mortíferos" e "homens bárbaros que fuzilam crianças com bonecas no colo".
Mendes busca o estado de harmonia do início dos tempos, a era dourada de "raças extintas", em que "a música é pão de todo o dia". Mas diante da barbárie que devasta o velho continente só são possíveis "as dissonâncias" e o "abismo... sem pianos". O choque das imagens de Mendes remete, portanto, não só ao registro onírico de um mundo primitivo e cambiante, mas também aos estilhaços das bombas, às arestas dos fuzis, ao caos da guerra. O poeta procura a fluidez dos sonhos e dos presságios, mas tem de se entender com o clamor dissonante da "poesia em pára-quedas".
O que Murilo Mendes almeja, sobretudo, é decifrar o "alfabeto antigo", abraçar a ordem "da anarquia eterna", talvez só pressentida em sonhos ou possível no além-túmulo: "Os imortais nos aguardam nas esferas da música". Transfigurados pela guerra que se agrava na Europa, os poemas de Mendes lançam seus braços ao mesmo tempo para um passado perdido e a eternidade sonhada.


As Metamorfoses
    
Autor: Murilo Mendes
Editora: Record
Quanto: R$ 18 (162 págs.)



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