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"AS METAMORFOSES"
Mendes cria imagens dissonantes
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"As Metamorfoses ", escritas por Murilo Mendes
na aurora da Segunda Guerra
Mundial, poucos anos após "Poesia em Pânico", atraíram a atenção de críticos importantes, de
Lauro Escorel a Antonio Candido.
Escorel aponta o caráter "musical" da obra, explicando em seguida que essa marca "não nasce
do ritmo, da harmonia ou da cadência do verso". De fato. A despeito da dedicatória a Mozart, não
há nada de muito tonal aqui. Ainda supondo que o efeito das "Metamorfoses" não sejam as consonâncias, mas as dissonâncias, é
preciso concordar que mesmo estas não se estabelecem em nível
auditivo, mas em termos de imagens e de significados.
Mendes cria um mundo de imagens em conflito, de recombinação de sentidos. É um mundo em
que vemos pássaros de quatro folhas, rosas migradoras, buquê de
nuvens; onde árvores se abraçam,
pastores apascentam pianos e os
sonhos têm mãos e pés. Não à toa,
Candido comparou o impacto
dessas imagens no terreno da lógica a que estamos acostumados
aos quadros metafísicos de De
Chirico e Salvador Dalí.
O poeta subverte o sentido das
palavras, causando em nós um
efeito de estranheza que só se desfaz quando aceitamos a nova estrutura significativa de seu discurso, mais afeita ao âmbito do inconsciente e dos sonhos. Quando
sonhamos, nossos sonhos nos parecem normais; só quando acordamos é que os achamos incongruentes. Mendes propõe que
aceitemos o sonho no estado de
vigília.
Pouco se discutiu a correspondência entre esta obra e sua antecessora, o longo poema homônimo de Ovídio. Sobre o mineiro,
costuma-se mencionar, à guisa de
justificativa para o empréstimo
do título, a cadeia de significados
mutantes suscitada por sua obra,
na qual uma coisa se transforma
incessantemente em outra, numa
metamorfose contínua. É o caso
dos primeiros versos, em que o
poeta se metamorfoseia em nuvem, pássaro e estátua.
Mas há algo além dessas transfigurações e das alusões que Mendes faz a ninfas, a deuses e ao Minotauro. Um ponto em comum
entre os dois poetas é que ambos
aludem a um estado de inocência
original, onde o "real é fábula" e é
possível comunicar-se "com os
deuses" (Mendes), ou onde as palavras "eram simples, a alma sincera" e não havia "regras" e
"opressão" (Ovídio). O poeta romano chamou a era de pureza
perdida de "Idade do Ouro", anterior ao reinado de Júpiter. Mendes também associa esse período
a época remotíssima: "o ar puro e
a inocência/ Estão mais recuados
do que os deuses gregos".
Seguindo a Idade de Ouro e de
Prata, veio a Idade de Bronze, em
que a "progênie belicosa" está
pronta para a "fúria sangrenta"
(Ovídio). Enquanto o latino menciona uma humanidade que se
desprendeu dos "laços morais" e
o hóspede é assassinado por seu
anfitrião, o mineiro fala de "gases
mortíferos" e "homens bárbaros
que fuzilam crianças com bonecas no colo".
Mendes busca o estado de harmonia do início dos tempos, a era
dourada de "raças extintas", em
que "a música é pão de todo o
dia". Mas diante da barbárie que
devasta o velho continente só são
possíveis "as dissonâncias" e o
"abismo... sem pianos". O choque
das imagens de Mendes remete,
portanto, não só ao registro onírico de um mundo primitivo e
cambiante, mas também aos estilhaços das bombas, às arestas dos
fuzis, ao caos da guerra. O poeta
procura a fluidez dos sonhos e dos
presságios, mas tem de se entender com o clamor dissonante da
"poesia em pára-quedas".
O que Murilo Mendes almeja,
sobretudo, é decifrar o "alfabeto
antigo", abraçar a ordem "da
anarquia eterna", talvez só pressentida em sonhos ou possível no
além-túmulo: "Os imortais nos
aguardam nas esferas da música".
Transfigurados pela guerra que se
agrava na Europa, os poemas de
Mendes lançam seus braços ao
mesmo tempo para um passado
perdido e a eternidade sonhada.
As Metamorfoses
Autor: Murilo Mendes
Editora: Record
Quanto: R$ 18 (162 págs.)
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