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MÚSICA ERUDITA
Rattle recria dilaceramento de Mahler
LUIS S. KRAUSZ
especial para a Folha
Em vida Gustav Mahler
(1860-1911) foi um homem dilacerado por um vigoroso impulso de
criação musical e, ao mesmo tempo, por um desejo e uma necessidade imensa de reconhecimento
em sua carreira de regente, na qual
alcançou o posto de titular da
prestigiosa Ópera Imperial de Viena -proeza à época quase inimaginável para um músico pobre, filho de pais pobres da Morávia e
que, além disso, era judeu.
Se sua alma de compositor demandava tranquilidade, recolhimento e concentração, sua carreira de grande regente com muitos
inimigos foi repleta de dificuldades políticas, de intrigas e de todas
as outras mesquinharias capazes
de arrasar, dia após dia, sua paz de
espírito. Mas ele necessitava,
igualmente, dessas duas atividades, que afinal se nutriam mutuamente e de cujo diálogo torturante
surgiu a mais expressiva obra musical do "fin-de-siècle" vienense.
A insatisfatória solução existencial encontrada por Mahler foi reservar os meses do curto verão
austríaco para a composição, afinal a essência de sua vida, o que o
levou a se referir a si mesmo, com
irônico amargor, como "compositor de horas vagas".
A biografia de Mahler dá a impressão de um homem permanente acuado pela pressa tanto quanto
pelo perfeccionismo, dois princípios que, em teoria, se excluem
mutuamente, mas que ele tentou
conciliar na prática. O resultado
foi um regente esquelético, mas
cujas representações operísticas
foram consideradas insuperáveis,
e um grande compositor que alcançou, com sua obra sinfônica,
dimensões inéditas, embora não
tenha sido reconhecido em vida
como tal.
A hipertensão intrínseca a tudo
o que fez Mahler parece estar presente nas interpretações, cada vez
mais aplaudidas, que o inglês Simon Rattle tem feito de sua grandiosa obra sinfônica, à frente da
City of Birmingham Symphony
Orchestra.
Em sua leitura da "4ª Sinfonia"
de Mahler, Rattle amplia o quanto
é possível a expressividade da música, sobretudo ao carregar na variabilidade dos andamentos. Se
mergulha na enorme sensualidade
dessa partitura, também se desvencilha das suas minúcias e complexidades com uma agilidade e
um virtuosismo espantosos. Rattle
expressa, sob a aparência ilusória
de um não-envolvimento, os resultados admiráveis de um envolvimento demorado com toda a
obra de Mahler.
Se, numa primeira audição, essa
interpretação da "4ª Sinfonia"
surpreende e pode soar errática
àqueles habituados a leituras mais
comportadas, é preciso pensar
que a hiperabundância rítmica e a
facilidade apenas aparente, aqui,
dão voz a uma das qualidades centrais da música de Mahler, cujo
nervosismo o maestro parece mimetizar, de maneira genuinamente teatral e bastante convincente.
Ao recriar na música uma sensação permanente de urgência, derivada da própria condição existencial de Mahler, Rattle faz jus ao título de um dos melhores intérpretes desse compositor hoje.
A soprano Amanda Roocroft,
interpreta, no "4º Movimento"
da "Sinfonia", o "Lied Das
Himmlische Leben", que faz um
retrato idílico da existência das almas bem-aventuradas no além,
extraído da antologia de poesia
popular alemã "Des Knaben
Wunderhorn". Ela compartilha
da concepção musical de Rattle,
embora uma certa falta de brilho
vocal e de expressividade dramática torne sua interpretação menos
convincente.
Disco: Sinfonia nº 4 de Mahler
Regente: Simon Rattle
Lançamento: EMI (importado)
Quanto: R$ 28, em média
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