São Paulo, segunda, 15 de junho de 1998

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MÚSICA ERUDITA
Rattle recria dilaceramento de Mahler

LUIS S. KRAUSZ
especial para a Folha

Em vida Gustav Mahler (1860-1911) foi um homem dilacerado por um vigoroso impulso de criação musical e, ao mesmo tempo, por um desejo e uma necessidade imensa de reconhecimento em sua carreira de regente, na qual alcançou o posto de titular da prestigiosa Ópera Imperial de Viena -proeza à época quase inimaginável para um músico pobre, filho de pais pobres da Morávia e que, além disso, era judeu.
Se sua alma de compositor demandava tranquilidade, recolhimento e concentração, sua carreira de grande regente com muitos inimigos foi repleta de dificuldades políticas, de intrigas e de todas as outras mesquinharias capazes de arrasar, dia após dia, sua paz de espírito. Mas ele necessitava, igualmente, dessas duas atividades, que afinal se nutriam mutuamente e de cujo diálogo torturante surgiu a mais expressiva obra musical do "fin-de-siècle" vienense.
A insatisfatória solução existencial encontrada por Mahler foi reservar os meses do curto verão austríaco para a composição, afinal a essência de sua vida, o que o levou a se referir a si mesmo, com irônico amargor, como "compositor de horas vagas".
A biografia de Mahler dá a impressão de um homem permanente acuado pela pressa tanto quanto pelo perfeccionismo, dois princípios que, em teoria, se excluem mutuamente, mas que ele tentou conciliar na prática. O resultado foi um regente esquelético, mas cujas representações operísticas foram consideradas insuperáveis, e um grande compositor que alcançou, com sua obra sinfônica, dimensões inéditas, embora não tenha sido reconhecido em vida como tal.
A hipertensão intrínseca a tudo o que fez Mahler parece estar presente nas interpretações, cada vez mais aplaudidas, que o inglês Simon Rattle tem feito de sua grandiosa obra sinfônica, à frente da City of Birmingham Symphony Orchestra.
Em sua leitura da "4ª Sinfonia" de Mahler, Rattle amplia o quanto é possível a expressividade da música, sobretudo ao carregar na variabilidade dos andamentos. Se mergulha na enorme sensualidade dessa partitura, também se desvencilha das suas minúcias e complexidades com uma agilidade e um virtuosismo espantosos. Rattle expressa, sob a aparência ilusória de um não-envolvimento, os resultados admiráveis de um envolvimento demorado com toda a obra de Mahler.
Se, numa primeira audição, essa interpretação da "4ª Sinfonia" surpreende e pode soar errática àqueles habituados a leituras mais comportadas, é preciso pensar que a hiperabundância rítmica e a facilidade apenas aparente, aqui, dão voz a uma das qualidades centrais da música de Mahler, cujo nervosismo o maestro parece mimetizar, de maneira genuinamente teatral e bastante convincente.
Ao recriar na música uma sensação permanente de urgência, derivada da própria condição existencial de Mahler, Rattle faz jus ao título de um dos melhores intérpretes desse compositor hoje.
A soprano Amanda Roocroft, interpreta, no "4º Movimento" da "Sinfonia", o "Lied Das Himmlische Leben", que faz um retrato idílico da existência das almas bem-aventuradas no além, extraído da antologia de poesia popular alemã "Des Knaben Wunderhorn". Ela compartilha da concepção musical de Rattle, embora uma certa falta de brilho vocal e de expressividade dramática torne sua interpretação menos convincente.

Disco: Sinfonia nº 4 de Mahler
Regente: Simon Rattle
Lançamento: EMI (importado) Quanto: R$ 28, em média



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