São Paulo, quarta-feira, 15 de agosto de 2001

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CRÍTICA

Soprano do Hespèrion XXI usa instrumento como voz; grupo liderado por Jordi Savall faz último concerto hoje em SP

Figueras dá nova pulsação à música antiga

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Idéia para um conto de Jorge Luis Borges: o rei Alfonso 10º, o Sábio, recebe um grupo de músicos numa noite do ano de 1261. Encanta-se com as cantigas dos trovadores. Devoto da Virgem, resolve dedicar-se à compilação dos cantos de santa Maria, que esses homens recolheram pelo reino de Castela e León. Ele mesmo compõe algumas melodias, incorporadas à coleção.
Setecentos e quarenta anos depois, numa noite de inverno de 2001, um grupo de músicos, dirigidos pelo catalão Jordi Savall, faz soar uma das canções de Alfonso, o Sábio, num concerto em São Paulo, no Brasil. A língua antiga é quase incompreensível para essa platéia do Novo Mundo, mas não é preciso compreendê-la para entender o sentido do canto, que é intenso e sofrido. A barcelonesa Montserrat Figueras revive essa música com acentos de flamenco e canto árabe. A música soa tão viva hoje como no século 13.
Um crítico de música assiste ao concerto. Neto de imigrantes judeus russos, sente-se misteriosamente preso nessa teia de música e pessoas, que atravessa séculos e continentes. Os músicos tocam melodias da diáspora sefardita. Expulsos da Espanha em 1492, os judeus se mudaram para Sarajevo, Alexandria, Esmirna, Rodes. Levaram consigo a roupa do corpo e a música. Voltam, para sempre, nessa música.
Sarajevo: a cidade, onde antigamente conviviam católicos, muçulmanos e judeus, tornou-se agora símbolo de intolerância e guerra. Savall, em poucas palavras, homenageia a tradição pacífica da cidade. O grupo é um exemplo vivo de multiplicidade: Memelsdorff, el Maloumi, Zuckerman, Olavide, Estevan.
Cada um se converte em personagem, pelo vestuário, pelos instrumentos (saltério, rebab, oud, sarod), pelo estilo comum, na fronteira do que hoje passa por "esoterismo". Musicalmente, o grupo fala um idioma próprio, onde se cruzam influências do Oriente e do Ocidente. Não só onde isso é bem visível -na combinação de instrumentos-, mas esotericamente audível: no domínio da melodia e do tempo. A arte de Figueras cria sombra e luz nas linhas pelo desenho análogo de intensidades e pela fluência dos arabescos. Ela serve de modelo para o canto de cada instrumento. Flauta, viela ou harpa, tudo é voz.
E essas vozes criam o tempo onde falam. Nosso tempo é regular e mensurável, fora de nós. Já para Savall e seus músicos, o tempo é outro. Concentrações e relaxamentos conferem a ele uma plasticidade de coisa viva.
Que o tempo é uma ilusão, já sabia o rei Alfonso, quando decidiu fixar, com linhas e letras, a música de seus trovadores. No conto de Borges, o crítico não pode encontrar uma resposta para suas angústias e alegrias escutando essa música. Como tudo mais, são matéria do tempo, e só um outro intérprete, num outro tempo, poderia entendê-las. Sua verdade -nossa verdade- é inacessível, embora se possa fazer ouvir.


Hespèrion XXI     
Com: Jordi Savall e Montserrat Figueras
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, SP, tel. 0/xx/11/258-3616)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 60 a R$ 120



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