São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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FESTIVAL DE GRAMADO

Por meio de loja de vinis, longa confronta brutalidade do presente com a persistência do passado

"Durval Discos" passeia por bairro paulistano

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A GRAMADO

"Durval Discos", de Anna Muylaert, o longa-metragem brasileiro de hoje no 30º Festival de Cinema de Gramado, é um filme tão radicalmente paulistano quanto os recentes "O Príncipe" e "O Invasor".
Mas, se a fita de Ugo Giorgetti mostra os escombros de uma São Paulo que não existe mais e o de Beto Brant esboça a cidade monstruosa que surge desses escombros, o foco de "Durval Discos" é mais concentrado. Com um olhar ao mesmo tempo crítico e amoroso, Anna Muylaert encena em seu primeiro longa o embate entre a persistência do passado e a brutalidade do presente no espaço restrito de um bairro, uma loja.
O bairro é Pinheiros, região residencial de classe média em que vilas e sobrados cedem terreno a cada dia aos bares, prédios de apartamentos, espigões comerciais, estacionamentos.
A loja é a Durval Discos, que resiste aos novos tempos vendendo apenas LPs de vinil, em especial dos anos 70, década em que também parece ter estacionado o dono da biboca, o cabeludo quarentão Durval (Ary França), que mora no andar de cima da loja com a mãe já meio biruta (Etty Fraser).
Essa espécie de bolha de tempo é rasgada violentamente quando uma (suposta) doméstica (Letícia Sabatella) vem trabalhar na casa e desaparece deixando sua (suposta) filha Kiki (Isabela Guasco) com Durval e sua mãe.
Lidar com o novo é justamente o que esses dois não sabem, sobretudo quando esse novo aparece sob a forma mais viva e imprevisível que possa existir: uma criança de cinco anos. Vêm daí, desse desajuste de tempos, os caminhos inusitados que o filme passa a tomar. Drama, comédia, trama policial e registro documental se alternam e, nos melhores momentos, se fundem, produzindo cenas de delicioso absurdo.
Anna Muylaert diz que começou a perceber mais claramente a cara que seu filme teria durante a discussão do projeto no laboratório de roteiros do Instituto Sundance: drama e comédia ao mesmo tempo, com uma discreta dose de loucura.
Ainda que se ressinta de fragilidades ocasionais -como certas quedas de ritmo e o descompasso entre os métodos de interpretação dos atores-, "Durval Discos" tira proveito de um punhado de belos "achados".
O primeiro deles foi a escalação de Ary França como Durval. Eterno coadjuvante chamado a servir de contraponto cômico ao drama dos outros, pela primeira vez o ator pôde colocar em cena boa parte dos recursos que desenvolveu e lapidou no teatro.
Por mais absurda que seja sua vida, ou as situações em que se envolve, Durval é sempre crível, divertido e comovente graças às nuanças que França lhe acrescenta a cada cena.
Outra opção feliz é a trilha sonora, composta de clássicos do rock e do pop brasileiros dos anos 70 e amarrada pela música original de André Abujamra.
Nunca é demais lembrar que o projeto de "Durval Discos" é anterior a "Alta Fidelidade", filme de Stephen Frears baseado no livro de Nick Hornby, com o qual tem em comum a idéia da loja de velhos discos de vinil.
Antes de estrear no longa, Anna Muylaert dirigiu o curta "A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti" e trabalhou como roteirista de programas infantis de televisão, como "Mundo da Lua", "Castelo Rá-Tim-Bum" e "Disney Club".


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