São Paulo, segunda-feira, 15 de agosto de 2005

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ARTES PLÁSTICAS/RÉPLICA

Dor, simbolização, e o que é sério e o que não é sério

OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Van Gogh cortou a orelha porque era artista -ou vice-versa? El Greco sofria de astigmatismo e por isso alongava as figuras? Fosse menor o nariz de Cleópatra, teria sido outra a história do Ocidente?
Qualquer resposta maniqueísta a essas questões ilusoriamente primárias será, também, ignorante. Nem tudo o que se aprende facilitado e resumido, na escola, se confirma a uma observação mais vivida, informada e inteligente. Por exemplo, a afirmativa "a arte não se comunica porque trata de uma questão individual, mas porque é ampla o suficiente para tratar de temas que vão muito além de mero individualismo". Foi publicada há dias neste jornal, numa crítica à exposição "Dor, Forma, Beleza".
A segunda metade é inegável: a obra de arte transcende o indivíduo que a cria. A primeira é leviana. Toda obra nasce de um fazer individual que implica obrigatoriamente graus variáveis de temperamento e vivência. Não há como retirar dela o indivíduo. O coletivo e o social não entram na obra por força de magia.
Quando se diz que a "Mona Lisa" contém ou traduz a crescente afirmação do homem renascentista, a rigor isso é só uma metáfora. Essa tal "crescente afirmação" não pegou em telas nem pincéis. Não passa de um conceito abstrato. Ao dar-lhe forma tangível, o homem Leonardo se manifesta ineludivelmente em sua obra, e também por tratar de questões subjetivas desse homem ela é capaz de se comunicar com outros homens e perenizar-se na história. Também. Sem maniqueísmo.
Com base nos textos em painéis que a integram -e não nas obras, que apareceram na crítica como Pilatos no Credo-, a exposição "Dor, Forma, Beleza" foi acusada de fazer "uma redução limitadora da criação", antepondo-lhe o dado biográfico e transformando a arte numa "ilustração de dilemas individuais". É uma acusação surpreendente, pois nos mesmíssimos textos está escrito: "arte não é biografia", "a biografia não explica a existência da arte"; "a obra de Ivan Serpa decididamente não faz confissões"; nada há "que permita dizer que [sua fase negra] tenha (...) servido para liberá-lo de tormentos interiores"; ela trata "de um momento de angústia do mundo, da observação da tragédia humana". E eu que pensava que estava tão claro!
Não sendo uma exposição "de tese", "Dor, Forma, Beleza" contém certamente uma tese -até porque não reúne obras ao acaso. No essencial, propõe-se a demonstrar que a experiência traumática, dolorosa, do ser humano, ultrapassado o estágio do pânico ou horror -que é caos informatado-, é dominada porque admite simbolização.
E, no caso do artista, tal simbolização costuma-se materializar em suportes capazes de suscitar a sensação que habitualmente chamamos de beleza. A crítica à exposição assegura que tal proposta não deve ser levada a sério. Data venia, o que não pode ser levado a sério é uma crítica que nem sequer olhou direito para o que pretendia criticar.


Olívio Tavares de Araújo é cineasta, crítico de arte e co-curador da exposição "Dor, Forma, Beleza"

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