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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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"AS IDÉIAS FORA DO LUGAR"

Para Paulo Arantes (USP), capitalismo atual confronta e enfraquece Constituição brasileira

Capital abriu mão de ideologia, diz filósofo

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A história das idéias vista pelo telescópio da rua Maria Antonia: se no século 19 davam a impressão de estarem fora de órbita, hoje são engolidas pelo buraco negro do capitalismo que prescinde de ideologia para funcionar.
De roldão, o processo ameaça levar consigo o que nos define como um lugar, a Constituição brasileira -idéias, afinal-, afirmou Paulo Arantes, o filósofo da USP que, na noite de anteontem, durante debate que celebrou os 30 anos do ensaio de Roberto Schwarz "As Idéias Fora do Lugar", descreveu o percurso.
Estava acompanhado do sociólogo Francisco de Oliveira, do historiador Fernando Novais e da professora de literatura Maria Elisa Cevasco, reunidos no endereço onde funcionava nos anos 60 a faculdade de filosofia da USP.
No ensaio que motivou a reunião, Schwarz mostra como o liberalismo no Brasil do século 19, em choque com a realidade de um país escravocrata, termina por ser percebido como "fora de lugar", ao mesmo tempo em que "racionaliza e justifica" seu oposto -o arbítrio próprio às relações de favor entre homens livres pobres e grandes proprietários.
Esse choque, continua Schwarz, seria encarnado literariamente na forma dos romances de maturidade de Machado de Assis. Não "no assunto", conforme disse anteontem Maria Elisa Cevasco, mas "no tratamento" dado a ele -como o ritmo da narrativa e a volubilidade do narrador.
Machado, afirmou Chico de Oliveira, "trata o mau-caratismo da elite brasileira com malandragem suficiente para que ela não perceba que está sendo chutada no traseiro".
Acontece que as ideologias, que puderam ser apresentadas por Machado ou por Nietzsche com a máscara que lhes era inerente, trariam, "ao mesmo tempo do mascaramento", "uma espécie de fundo falso ou segredo recalcado em que elas, confrontadas consigo mesmas, encerravam um grão de verdade que permitia dar um passo além", disse Arantes.
Se no século 19 o liberalismo era ideologia que justificava "em primeiro grau" o capitalismo na Europa e, "em segundo grau", a sociabilidade brasileira, ao mesmo tempo, por ser falseamento, dava régua e compasso para a crítica de uma sociedade e de outra (via socialistas e, talvez de maneira mais radical, do escritor carioca).
Pois anteontem, o filósofo da USP afirmou, seguindo a rota traçada por Schwarz, que "existe mais verdade e menos ideologia no mundo contemporâneo". "Era melhor o tempo em que havia ideologia."
As mercadorias ou o dinheiro do mercado financeiro, ao circularem pelo mundo, carregariam consigo, como a aristocracia pré-revolução, seu próprio direito, dinamitando simultaneamente formalismos locais e direitos "universais".
As agências reguladoras, "em que cada caso é um caso, que não admite generalidades", e a recente liberação dos transgênicos empreendida pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva são exemplos concretos de um "confronto com a Constituição", afirmou Arantes.
"A Constituição está indo para o necrotério", disse, e as recentes propostas de revisão constitucional -como a que foi feita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso- são sintoma disso.
Essa sociedade em que por um lado o capital vai comendo as idéias, por outro faz desaparecer "a chance de superar o subdesenvolvimento", segundo a síntese de Arantes para a obra de Chico de Oliveira "O Ornitorrinco", posfácio da reedição da "Crítica à Razão Dualista", lançada anteontem no mesmo evento pela editora Boitempo.
No texto, Oliveira afirma que o capitalismo no Brasil, que se alimentou do trabalho informal nas grandes cidades e da agricultura não capitalista para rebaixar seus custos e crescer vigorosamente ao longo do século 20, encontrou um limite na recente revolução tecnológica e se tornou incapaz de realizar os investimentos necessários para manter o mesmo vigor.
Num único passe, Arantes alinhou Machado, Schwarz e Oliveira como pensadores que, contra a direita e certa esquerda, se recusaram a "apostar todas as suas fichas no futuro".

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