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"AS IDÉIAS FORA DO LUGAR"
Para Paulo Arantes (USP), capitalismo atual confronta e enfraquece Constituição brasileira
Capital abriu mão de ideologia, diz filósofo
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
A história das idéias vista pelo
telescópio da rua Maria Antonia:
se no século 19 davam a impressão de estarem fora de órbita, hoje
são engolidas pelo buraco negro
do capitalismo que prescinde de
ideologia para funcionar.
De roldão, o processo ameaça
levar consigo o que nos define como um lugar, a Constituição brasileira -idéias, afinal-, afirmou
Paulo Arantes, o filósofo da USP
que, na noite de anteontem, durante debate que celebrou os 30
anos do ensaio de Roberto
Schwarz "As Idéias Fora do Lugar", descreveu o percurso.
Estava acompanhado do sociólogo Francisco de Oliveira, do historiador Fernando Novais e da
professora de literatura Maria Elisa Cevasco, reunidos no endereço
onde funcionava nos anos 60 a faculdade de filosofia da USP.
No ensaio que motivou a reunião, Schwarz mostra como o liberalismo no Brasil do século 19,
em choque com a realidade de um
país escravocrata, termina por ser
percebido como "fora de lugar",
ao mesmo tempo em que "racionaliza e justifica" seu oposto -o
arbítrio próprio às relações de favor entre homens livres pobres e
grandes proprietários.
Esse choque, continua Schwarz,
seria encarnado literariamente na
forma dos romances de maturidade de Machado de Assis. Não
"no assunto", conforme disse anteontem Maria Elisa Cevasco, mas
"no tratamento" dado a ele -como o ritmo da narrativa e a volubilidade do narrador.
Machado, afirmou Chico de
Oliveira, "trata o mau-caratismo
da elite brasileira com malandragem suficiente para que ela não
perceba que está sendo chutada
no traseiro".
Acontece que as ideologias, que
puderam ser apresentadas por
Machado ou por Nietzsche com a
máscara que lhes era inerente, trariam, "ao mesmo tempo do mascaramento", "uma espécie de fundo falso ou segredo recalcado em
que elas, confrontadas consigo
mesmas, encerravam um grão de
verdade que permitia dar um passo além", disse Arantes.
Se no século 19 o liberalismo era
ideologia que justificava "em primeiro grau" o capitalismo na Europa e, "em segundo grau", a sociabilidade brasileira, ao mesmo
tempo, por ser falseamento, dava
régua e compasso para a crítica de
uma sociedade e de outra (via socialistas e, talvez de maneira mais
radical, do escritor carioca).
Pois anteontem, o filósofo da
USP afirmou, seguindo a rota traçada por Schwarz, que "existe
mais verdade e menos ideologia
no mundo contemporâneo". "Era
melhor o tempo em que havia
ideologia."
As mercadorias ou o dinheiro
do mercado financeiro, ao circularem pelo mundo, carregariam
consigo, como a aristocracia pré-revolução, seu próprio direito, dinamitando simultaneamente formalismos locais e direitos "universais".
As agências reguladoras, "em
que cada caso é um caso, que não
admite generalidades", e a recente
liberação dos transgênicos empreendida pelo governo de Luiz
Inácio Lula da Silva são exemplos
concretos de um "confronto com
a Constituição", afirmou Arantes.
"A Constituição está indo para o
necrotério", disse, e as recentes
propostas de revisão constitucional -como a que foi feita pelo ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso- são sintoma disso.
Essa sociedade em que por um
lado o capital vai comendo as
idéias, por outro faz desaparecer
"a chance de superar o subdesenvolvimento", segundo a síntese de
Arantes para a obra de Chico de
Oliveira "O Ornitorrinco", posfácio da reedição da "Crítica à Razão Dualista", lançada anteontem
no mesmo evento pela editora
Boitempo.
No texto, Oliveira afirma que o
capitalismo no Brasil, que se alimentou do trabalho informal nas
grandes cidades e da agricultura
não capitalista para rebaixar seus
custos e crescer vigorosamente ao
longo do século 20, encontrou um
limite na recente revolução tecnológica e se tornou incapaz de realizar os investimentos necessários
para manter o mesmo vigor.
Num único passe, Arantes alinhou Machado, Schwarz e Oliveira como pensadores que, contra a
direita e certa esquerda, se recusaram a "apostar todas as suas fichas no futuro".
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