São Paulo, quinta-feira, 15 de novembro de 2001

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"LAVOURA ARCAICA"

O diretor Luiz Fernando Carvalho, que vem da televisão, não precisa usá-la como modelo de nada

Longa é exceção exemplar no cinema do país

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É raro alguém passar da dramaturgia de TV ao cinema com desenvoltura. Na primeira, uma espécie de arte oficial brasileira, o vento sopra sempre a favor. Na segunda, o enjeitado da família, sempre contra.
No mais, a TV é uma escola da facilidade narrativa, por isso, no contato com a tela grande, o que essa passagem reserva é, quase sempre, uma novela concentrada, à qual normalmente falta um elemento essencial que as novelas trabalham muito bem: a capacidade de plantar expectativas.
Por isso, a passagem ao cinema de Luiz Fernando Carvalho é animadora. É verdade que Carvalho passa por ser o "enfant terrible" da Globo. Ainda assim, enfiar-se numa aventura como "Lavoura" e sobreviver é um triunfo.
Há filmes que usam a literatura como álibi cultural, capaz de justificar a existência do enjeitado. No caso de Raduan Nassar, é improvável que se busque esse efeito. "Lavoura Arcaica", em particular, é um texto áspero, quase impenetrável, cujas dificuldades anulam o efeito de signo cultural do livro.
Mais, a história diz respeito à lavoura, a imigrantes árabes, contato com a terra, família. É uma experiência de sobrevivência, na qual o jovem André (Selton Mello) precisa superar não os traumas do desamor familiar, mas o excesso de amor, que o leva à paixão incestuosa pela irmã.
A escrita, no livro, parece buscar penetrar cada camada da existência, não atrás de solução, pois não existe solução: narrar é como uma condição para manter-se vivo.
Carvalho não faz por menos. Filma empenhando sua vida. Aliás, não apenas filma como escreve o roteiro e monta -abarca quase todo o processo criativo, como se precisasse impregnar com sua presença cada fotograma, para ser fiel à história e a si.
Daí o bombardeio de metáforas do texto não virar literatice. Diga o texto o que disser, é impossível esquecer imagens, como aquelas em que o menino impregna seus pés com a terra, numa comunhão com um mundo exterior que, veremos, nada tem de exterior.
Em "Lavoura Arcaica", o problema é passar do exterior ao interior, do presente ao passado, do pessoal ao familiar. É mergulhar no labirinto de relações que envolvem língua, credo, sexualidade, tempo, família. O título não diz respeito à agricultura, ou não só. Mais do que ao rural, é ao trabalho que nos remete. A noção de arcaísmo não sugere algo ultrapassado: trata-se de antiguidade.
Ou seja, é menos com agricultura e mais com arqueologia que estamos lidando. Como se, a cada sequência, "Lavoura" se dispusesse a retirar uma camada, remontando no tempo, reorganizando -longe da linearidade- a teia de relações que envolve o protagonista, até chegar, finalmente...
A quê? Ao personagem? A sua família? Ao incesto? À ligação com a terra? A tudo isso, com certeza. Mas o que esse trabalho tem de mais insano e poético é que, mais do que tudo, só conduz a ele mesmo: a uma escrita, a um tecido de imagens e sons que só se justifica pelo fato de existir.
Ele é inútil, gratuito, ou seria se não estivesse ali a justificativa de uma vida. Não interessa ao mercado, à economia, nem à agronomia. Como a deixar bem claro tudo isso, Carvalho faz um filme com três horas de duração e sem concessões. Seu esplendor é o do amor a um texto, a uma idéia a que se entrega plenamente.
O cinema brasileiro tem tido um ano árduo -as dificuldades de financiamento, a inanição teórica, as ingratidões do mercado terminaram por levar a maior parte dos filmes para o oportunismo e o brilhareco. "Lavoura Arcaica" é uma exceção exemplar.
(P.S.: E, como a maior parte dos filmes que se fazem hoje parecem ter como aspiração e inspiração a TV, talvez seja apenas natural que um dos raros filmes de cinema de 2001 seja de alguém vindo da TV, isto é, que não sente nenhum complexo em relação a ela nem precisa tomá-la por modelo).


Lavoura Arcaica
    
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Produção: Brasil, 2001
Com: Selton Mello, Simone Spoladore




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