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"LAVOURA ARCAICA"
O diretor Luiz Fernando Carvalho, que vem da televisão, não precisa usá-la como modelo de nada
Longa é exceção exemplar no cinema do país
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
É raro alguém passar da dramaturgia de TV ao cinema
com desenvoltura. Na primeira,
uma espécie de arte oficial brasileira, o vento sopra sempre a favor. Na segunda, o enjeitado da
família, sempre contra.
No mais, a TV é uma escola da
facilidade narrativa, por isso, no
contato com a tela grande, o que
essa passagem reserva é, quase
sempre, uma novela concentrada,
à qual normalmente falta um elemento essencial que as novelas
trabalham muito bem: a capacidade de plantar expectativas.
Por isso, a passagem ao cinema
de Luiz Fernando Carvalho é animadora. É verdade que Carvalho
passa por ser o "enfant terrible"
da Globo. Ainda assim, enfiar-se
numa aventura como "Lavoura"
e sobreviver é um triunfo.
Há filmes que usam a literatura
como álibi cultural, capaz de justificar a existência do enjeitado. No
caso de Raduan Nassar, é improvável que se busque esse efeito.
"Lavoura Arcaica", em particular,
é um texto áspero, quase impenetrável, cujas dificuldades anulam
o efeito de signo cultural do livro.
Mais, a história diz respeito à lavoura, a imigrantes árabes, contato com a terra, família. É uma experiência de sobrevivência, na
qual o jovem André (Selton Mello) precisa superar não os traumas do desamor familiar, mas o
excesso de amor, que o leva à paixão incestuosa pela irmã.
A escrita, no livro, parece buscar
penetrar cada camada da existência, não atrás de solução, pois não
existe solução: narrar é como uma
condição para manter-se vivo.
Carvalho não faz por menos.
Filma empenhando sua vida.
Aliás, não apenas filma como escreve o roteiro e monta -abarca
quase todo o processo criativo,
como se precisasse impregnar
com sua presença cada fotograma, para ser fiel à história e a si.
Daí o bombardeio de metáforas
do texto não virar literatice. Diga
o texto o que disser, é impossível
esquecer imagens, como aquelas
em que o menino impregna seus
pés com a terra, numa comunhão
com um mundo exterior que, veremos, nada tem de exterior.
Em "Lavoura Arcaica", o problema é passar do exterior ao interior, do presente ao passado, do
pessoal ao familiar. É mergulhar
no labirinto de relações que envolvem língua, credo, sexualidade, tempo, família. O título não
diz respeito à agricultura, ou não
só. Mais do que ao rural, é ao trabalho que nos remete. A noção de
arcaísmo não sugere algo ultrapassado: trata-se de antiguidade.
Ou seja, é menos com agricultura e mais com arqueologia que estamos lidando. Como se, a cada
sequência, "Lavoura" se dispusesse a retirar uma camada, remontando no tempo, reorganizando
-longe da linearidade- a teia de
relações que envolve o protagonista, até chegar, finalmente...
A quê? Ao personagem? A sua
família? Ao incesto? À ligação
com a terra? A tudo isso, com certeza. Mas o que esse trabalho tem
de mais insano e poético é que,
mais do que tudo, só conduz a ele
mesmo: a uma escrita, a um tecido de imagens e sons que só se
justifica pelo fato de existir.
Ele é inútil, gratuito, ou seria se
não estivesse ali a justificativa de
uma vida. Não interessa ao mercado, à economia, nem à agronomia. Como a deixar bem claro tudo isso, Carvalho faz um filme
com três horas de duração e sem
concessões. Seu esplendor é o do
amor a um texto, a uma idéia a
que se entrega plenamente.
O cinema brasileiro tem tido
um ano árduo -as dificuldades
de financiamento, a inanição teórica, as ingratidões do mercado
terminaram por levar a maior
parte dos filmes para o oportunismo e o brilhareco. "Lavoura Arcaica" é uma exceção exemplar.
(P.S.: E, como a maior parte dos
filmes que se fazem hoje parecem
ter como aspiração e inspiração a
TV, talvez seja apenas natural que
um dos raros filmes de cinema de
2001 seja de alguém vindo da TV,
isto é, que não sente nenhum
complexo em relação a ela nem
precisa tomá-la por modelo).
Lavoura Arcaica

Direção: Luiz Fernando Carvalho
Produção: Brasil, 2001
Com: Selton Mello, Simone Spoladore
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