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CONTARDO CALLIGARIS
Somos violentos e democráticos, mas posudos
Há jovens brasileiros de
classe média e alta estudando em universidades americanas.
Desde o 11 de setembro, muitas famílias, preocupadas, pedem que
eles voltem para casa.
Esses jovens, contrariamente
aos imigrantes, não viajaram para fazer um pé-de-meia. Os pais
quiseram que eles estudassem nos
EUA sobretudo para que vivessem num lugar mais seguro.
Hoje, as famílias descobrem que
nos EUA também é possível morrer de bala (ou de bomba) perdida. Mas não é só isso: a violência
urbana -que, alguns anos atrás,
foi a razão para que os filhos fossem mantidos longe do Brasil-
tornou-se, para todos nós, uma
espécie de fenômeno natural. Ela
faz parte da paisagem. Parece
completar a descrição de nosso
dia-a-dia, como a seca integra a
definição do Nordeste. Claro, há
planos de irrigação e há regularmente iniciativas contra a violência. Mas são lamentações cujo pano de fundo não deixa de ser uma
espécie de aceitação resignada.
Como isso é possível?
Acredito que nossa capacidade
de revolta contra a violência se esgote facilmente, porque sabemos
que, no fundo, a violência é o corolário "natural" de nossa cultura. Somos os rebentos de um divórcio radical entre a função social dos cidadãos e sua eminência
na sociedade.
Sem retroceder muito no tempo,
no vilarejo, por exemplo, podia
existir uma relação entre a função e o lugar social de cada um.
Havia o bombeiro, o barbeiro, o
médico, o professor, o alfaiate, o
comerciante, o marceneiro: um
desfile de funções às quais correspondiam prestígios diferentes
(nem sempre organizados em hierarquias estúpidas). A modernidade urbana propõe um paradigma mais adequado à complexidade da sociedade citadina: o
prestígio depende abstratamente
da riqueza. Faça dinheiro e, seja
qual for sua função social (ou sua
eventual inutilidade), você será
eminente. Não é mais simples?
Esse cinismo torna difícil a subsistência de qualquer moral comunitária. Afinal, se a riqueza é o
critério da relevância social de cada um, melhor procurá-la da maneira mais direta possível, sem
passar pelo exercício de fastidiosas funções sociais. A cidade moderna torna-se, então, uma selva.
Se for bem policiada, seus predadores serão especuladores engravatados. Se for mal policiada, serão assaltantes. Em suma, nós nos
resignamos com a violência, pois
ela é autorizada por nosso modo
de organizar as diferenças sociais.
Estava no meio dessas (desagradáveis) reflexões quando visitei, no Museum of Fine Arts de
Boston, a exposição (aberta até
janeiro) "The Look" -imagens
de glamour e estilo. É uma excelente seleção de fotografias de
George Hoyningen-Huene e de
seu pupilo Horst P. Horst -fotógrafos que, entre as duas guerras
mundiais, inventaram o formato
hodierno da revista de moda.
A "Vogue", em 1930, gastava
US$ 100 mil em desenhos e US$ 40
mil em fotografias. Dez anos mais
tarde, a proporção era invertida.
Nessa época, a moda cessou de
vender roupas e passou a vender
imagens. O leitor da "Vogue" ainda compra exatamente o que
aparece nessa extraordinária exposição: uma galeria de posudos
e, portanto, um repertório de poses. Saí da exposição com a convicção de que a revista de moda é
essencial para entender o funcionamento da sociedade urbana
moderna. Pois não basta dizer
que, na distribuição de méritos e
prestígios, o dinheiro substituiu
hoje a função social. Isso, de certa
forma, seria libertador. Para subir na consideração de todos, bastaria fazer dinheiro. Seríamos
violentos -nos negócios, na exploração ou nos assaltos. Mas todos, em princípio, poderíamos
chegar lá. Violentos e democráticos, não é?
Ora, não é bem assim. Para ter
prestígio, ainda é necessário encontrar um "look", uma pose. E a
pose é o ideal inatingível que alimenta nossa insatisfação (movimentando desejos e carteiras).
Podemos ganhar ou roubar o
necessário para ter uma casa com
piscina ou tirar férias em Montecarlo. Nós nos sentaremos no
trampolim com um calção de
marca. Mas nunca seremos as figuras de banhistas sublimes que,
numa foto famosa de Huene, estão sentados de costas para a gente, olhando para um horizonte
marinho perfeito e misterioso.
Até porque -aprendi na exposição- a foto em questão foi tirada no último andar do prédio da
"Vogue", em Nova York. O misterioso horizonte era, de fato, um
parapeito de concreto.
P.S.
1) Resumi para um amigo o tema desta coluna. Ele estranhou
que não estivesse comentando as
manifestações de liberdade pelas
ruas de Cabul: música tocando,
homens cortando a barba e mulheres levantando o véu. Pois é,
estou mais que disposto a festejar,
com o povo do Afeganistão, a derrota do Taleban. Espero que seja
definitiva. Com isso, é difícil que o
Afeganistão não se abra, aos poucos, para a nossa modernidade. É
tempo, então, de pensar não só na
liberdade que eles estão ganhando mas também nos pepinos que
estão comprando: os nossos.
2) Não há catálogo da exposição, mas existe o livro: "The Photographic Art of Hoyningen-Huene" (Thames & Hudson).
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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