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biblioteca FOLHA
Obra de 1951 sobre imperador romano é o lançamento de amanhã
"Adriano" concilia olhar humano com rigor histórico
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
Dizem que na hora da morte a
gente vê a vida passar diante dos
olhos como um filme acelerado.
Usando outros meios e outra velocidade, a belga naturalizada
americana Marguerite Yourcenar
(1903-1987) construiu em "Memórias de Adriano" um relato
desse tipo narrado pelo imperador romano do seu próprio ponto
de vista. Tecnicamente, não há no
expediente nenhuma ousadia.
Mas o resultado é extraordinário.
Publicada originalmente em
1951, a obra foi iniciada quase 30
anos antes. Apesar de completos,
os manuscritos produzidos por
Yourcenar entre 1925 e 1929 foram destruídos pela autora. "E
mereciam sê-lo", segundo ela.
Apenas em 1948 ela retomou o
plano.
As memórias são endereçadas a
Marco Aurélio, imperador romano e filósofo estóico que comandou Roma entre 161 e 180, depois
de suceder a Antonino, que por
sua vez sucedera a Adriano (imperador de 117 a 138).
Nesses 22 anos, Adriano ocupou-se de pacificar os territórios
conquistados por seu antecessor,
o belicista Trajano, e de restaurar
a ordem econômica na sede do
império.
Na obra, Adriano descreve detalhadamente os processos político
e militar que o antecederam e os
que comandou. Yourcenar, porém, não visa a um tratado político, muito menos a um romance
histórico na linha das obras recentes que retratam personagens
como Alexandre, Cleópatra, entre
outros.
Ela se interessa pelo homem e
suas realizações, mas do ponto de
vista dele. Como define a autora,
"nunca perder de vista o gráfico
de uma vida humana, que não se
compõe, digam o que disserem,
de uma horizontal e de duas perpendiculares, mas de três linhas
sinuosas, prolongadas até o infinito, incessantemente reaproximadas e divergindo sem cessar: o
que o homem julgou ser, o que ele
quis ser, e o que ele foi".
Potencial romanesco
Sem perder de vista o rigor histórico, conquistado com o recurso a um arsenal de fontes (explicitadas ao final do volume), Yourcenar se interessa mesmo é pelo
potencial romanesco de seu personagem.
Ou seja, mesmo que o texto seja
repleto de fatos históricos e de reflexões de natureza filosófica, é a
história do homem e sua possibilidade de expressar ao mesmo
tempo a miséria e a grandeza do
humano que encontramos aqui.
História transcorrida numa fase
em que, como destaca Yourcenar
citando Flaubert, "os deuses, não
existindo mais, e o Cristo, não
existindo ainda, houve, de Cícero
a Marco Aurélio, um momento
único em que só existiu o homem".
Isso se torna possível não apenas pelo fato de se tratar de um
grande homem, de uma eminência histórica, por assim dizer, mas
por Yourcenar conseguir, por
meio da escritura, recriá-lo do
ponto de vista íntimo, uma perspectiva da qual a grandeza só se
atribui aos deuses.
Nesse contraste de perspectivas
do íntimo e do público, Yourcenar consegue pintar um retrato
sem idealizações, no qual o trágico da vida alimenta a condição
humana incessantemente. E entrega ao leitor uma história de
uma perspectiva que a história
apagou.
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