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Ato nş 5 foi a "bad trip" dos hippies de esquerda
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
²
A paisagem começou a tremer como gelatina. Os morros
em volta da praia dançavam
rumba. Eu pensei: "Bateu. Bateu o LSD. Finalmente vou conhecer a loucura". Fui andando pela praia deserta e sentei
na beira d'água. As ondas quebravam em câmera lenta, como se o mar fosse de chumbo líquido.
Eu tinha tomado meu primeiro ácido lisérgico, o "sunshine",
para esquecer o Ato nş 5, decretado semanas antes, em 1968.
Eu queria ver "Lucy no céu com
diamantes", em vez das fuças
dos fascistas que enchiam os
jornais censurados.
Mas, aí... eu olhei para minhas pernas nuas dobradas em
"xis" e minhas pernas começaram a murchar e inchar, pulsando, como se tivessem vida
independente de meu corpo;
minhas pernas ficavam quase
transparentes e finas como tentáculos de um extraterrestre ou
de uma grande lula ali naufragada na beira do mar de Mambucaba, onde eu estava, bem
longe dos milicos que nos tinham tirado a liberdade, a esperança, a beleza.
Eu buscava um "desbunde"
alegre e florido como o dos
americanos do "flower power",
mas saquei ali que a devastação que 68 iria fazer nas "melhores cabeças de minha geração" seria tão brutal como a
tortura que enchia os quartéis
de gritos.
Minhas pernas eram tentáculos e meus braços flutuavam
trêmulos diante do mar, e o
sentimento inicial de euforia
ao ver a rumba das montanhas
dera lugar a um fundo sentimento de solidão. Eu me senti
como um embrião abandonado na beira do mar, sem pai
nem mãe, e percebi que tinha
caído no buraco de uma "bad
trip", uma viagem sem volta.
De repente, tudo ficou em
preto-e-branco e, de dentro de
uma pequena lagoa de água
parada, uns urubus levantaram vôo em minha direção. E
os urubus voavam lentíssimos,
com as asas batendo como
chumbo, flap, flap, pesadíssimos no ar, e eu pensei com pavor: "Estou perdido, nunca
mais vou voltar...".
Não haveria um só lugar no
mundo onde eu tivesse paz, eu
senti. A angústia de morte se
instalou como nunca e eu vi então, lambidos pela maré, uns
soldados deitados me apontando fuzis.
Eu sabia que eram troncos de
árvore ali jogados, eu sabia que
toda alucinação tinha uma base realista, mas, mesmo assim,
eu "via" realmente os soldados
me apontando as armas como
se estivessem desembarcando
para me fuzilar, e tudo em
branco-e-preto como a imagem
do locutor Alberto Cury na TV
lendo o Ato nş 5 com sua voz
linda que me tirara o direito à
vida, e a cara de Gama e Silva,
o ministro da Injustiça, e as bochechas de Costa e Silva, sempre de horríveis óculos escuros,
e a alegria selvagem da primeira-dama Yolanda dando risadas, a vitória terrível da perua
triunfal, Yolanda, a lady Macbeth brega que dissera: "Fecha,
Costa, fecha tudo!..."
Eu entendi em 68 que a história detesta indefinições e que,
nos países miseráveis, ela sempre se define pelo pior. O ano de
68 veio para facilitar a invasão
multinacional torta que se chamou depois "milagre brasileiro".
Castelo Branco era "democrata" demais, ambíguo demais para ficar vivo naquela
direita sinistra. (E penso hoje:
resistirá a ambiguidade de
FHC?)
Então, vi no outro canto da
praia uma mulher morta, em
decomposição, meio comida de
peixes, uma mulher que podia
ser um banco de areia, mas que
era uma mulher morta, sim,
me olhando com órbitas vazias, e eu murchando e inchando, os braços e pernas pulsantes.
Resolvi me salvar e correr para um lugar qualquer onde eu
tivesse paz. E a grande lula de
pernas moles correu até uma
tendinha de beira de estrada,
onde havia uns dez matutos velhos, uns pescadores tisnados
de sol que me olhavam desconfiados e para quem eu não podia dar nenhuma "bandeira",
não podia deixá-los ver que eu
estava muito louco ali viajando num ácido político.
Dentro da venda, já estava
um colega meu de viagem, um
"hipongão" alto e magro vestido num improvável e quentíssimo casaco de ovelha, que delirava num comício espantoso
sobre a vida e a morte para os
boquiabertos pescadores, de
cachaça na mão.
Eu entendi com horror que a
política ia virar uma piada ridícula dali para frente, um pesadelo cômico, e entendi que
hippie no Brasil não era um
florido esperançoso, como nos
países ricos; hippie, aqui, era
uma espécie de exilado mental,
um cassado da mente, um preso político solto na rua; entendi
que o "desbunde" era perder o
gás, perder a pose, perder a
bunda, o desbunde não tinha o
sentido "new age" de hoje
-"que desbunde, que legal!"- , o desbunde era uma
derrota, um suicídio branco, e
eu entendi que, mais que a tortura, o que me dava pânico era
a grande pasta gorda venenosa
que ia me sufocar nos anos seguintes, um nada.
Um grande quartel vazio e
triste ia me cobrir de gosma, se
bem que isso eu entendi depois,
pois agora a paisagem continuava a tremer, e a vendinha de
beira de estrada ficou insuportável, e eu não tinha também ali
nenhuma paz, pois os matutos
pareciam rir de mim com escárnio, e eu fugi dali e voltei a andar pela praia e comecei a ouvir
um fino e agudo ruído como
uma broca e "vi-ouvi" a broca
de uma das mais sutis torturas
do DOI-Codi: um dentista militar abria o dente do infeliz e botava a broca diretamente no
nervo vivo, o que faz você denunciar a própria mãe, e comecei a "ver-ouvir" outras torturas, como a dos choques elétricos com a música "As Curvas da
Estrada de Santos", de Roberto
Carlos, tocando bem alto, para
abafar os gritos dos desgraçados.
Passei por outro companheiro
de viagem, deitado dentro da
lama verde do manguezal de
onde voaram os urubus de
chumbo, quietinho no brejo, só
com a cabeça de fora; "maior
barato", me disse ele; "barato e
guerra", pensei eu, o Brasil estava dividido em "maior barato"
e heróis suicidas, que se matavam na guerrilha, sem a mais
remota chance de vitória, loucos como aquele ali deitado na
lama.
E os urubus voltavam, batendo as asas pesadas, e eu entendi
que um pedaço do Brasil tinha
sido amputado pelos milicos e
aderentes civis e eu vi a cara do
Delfim Netto na areia da praia
e a cara do Passarinho e a cara
de Médici, e o meu companheiro da lama passou andando como um faquir dos Ganges pingando limo, e o doidão de casaco de ovelha passou gritando
num incontrolável ataque de riso e lágrimas, discursando sobre
a necessidade de os peixes se revoltarem contra os pescadores,
e eu sentei de novo na areia molhada, e as ondas me lambiam
as pernas de lula, as mãos de
polvo, e eu me entreguei então à
angústia sem resistência, no
mais fundo desespero que senti,
do qual me lembro até hoje.
Eu intuía, ali na praia, que alguma coisa se fechava para
sempre, uma "alma de violino"
se quebrava para sempre no
Brasil, um buraco no tempo
matava uma vocação brasileira
pura que havia existido e que se
apagava.
E digo isso hoje, dezembro de
98, com outro frio na alma também, e me parece que tentáculos
trêmulos batem estas linhas no
computador.
Sinto também (estarei muito
louco?) que esta liberdade sem
controle político, esta invasão
das corporações globais, este
mercado interno esquecido, tudo parece um Ato nş 5 sem rostos militares, mas que pode estar matando alguma outra coisa essencial que sobrou em nós,
como aquelas que a ditadura
matou, 30 anos atrás. É tudo
verdade.
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