São Paulo, terça, 15 de dezembro de 1998

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Ato nş 5 foi a "bad trip" dos hippies de esquerda

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

²
A paisagem começou a tremer como gelatina. Os morros em volta da praia dançavam rumba. Eu pensei: "Bateu. Bateu o LSD. Finalmente vou conhecer a loucura". Fui andando pela praia deserta e sentei na beira d'água. As ondas quebravam em câmera lenta, como se o mar fosse de chumbo líquido.
Eu tinha tomado meu primeiro ácido lisérgico, o "sunshine", para esquecer o Ato nş 5, decretado semanas antes, em 1968. Eu queria ver "Lucy no céu com diamantes", em vez das fuças dos fascistas que enchiam os jornais censurados.
Mas, aí... eu olhei para minhas pernas nuas dobradas em "xis" e minhas pernas começaram a murchar e inchar, pulsando, como se tivessem vida independente de meu corpo; minhas pernas ficavam quase transparentes e finas como tentáculos de um extraterrestre ou de uma grande lula ali naufragada na beira do mar de Mambucaba, onde eu estava, bem longe dos milicos que nos tinham tirado a liberdade, a esperança, a beleza.
Eu buscava um "desbunde" alegre e florido como o dos americanos do "flower power", mas saquei ali que a devastação que 68 iria fazer nas "melhores cabeças de minha geração" seria tão brutal como a tortura que enchia os quartéis de gritos.
Minhas pernas eram tentáculos e meus braços flutuavam trêmulos diante do mar, e o sentimento inicial de euforia ao ver a rumba das montanhas dera lugar a um fundo sentimento de solidão. Eu me senti como um embrião abandonado na beira do mar, sem pai nem mãe, e percebi que tinha caído no buraco de uma "bad trip", uma viagem sem volta.
De repente, tudo ficou em preto-e-branco e, de dentro de uma pequena lagoa de água parada, uns urubus levantaram vôo em minha direção. E os urubus voavam lentíssimos, com as asas batendo como chumbo, flap, flap, pesadíssimos no ar, e eu pensei com pavor: "Estou perdido, nunca mais vou voltar...".
Não haveria um só lugar no mundo onde eu tivesse paz, eu senti. A angústia de morte se instalou como nunca e eu vi então, lambidos pela maré, uns soldados deitados me apontando fuzis.
Eu sabia que eram troncos de árvore ali jogados, eu sabia que toda alucinação tinha uma base realista, mas, mesmo assim, eu "via" realmente os soldados me apontando as armas como se estivessem desembarcando para me fuzilar, e tudo em branco-e-preto como a imagem do locutor Alberto Cury na TV lendo o Ato nş 5 com sua voz linda que me tirara o direito à vida, e a cara de Gama e Silva, o ministro da Injustiça, e as bochechas de Costa e Silva, sempre de horríveis óculos escuros, e a alegria selvagem da primeira-dama Yolanda dando risadas, a vitória terrível da perua triunfal, Yolanda, a lady Macbeth brega que dissera: "Fecha, Costa, fecha tudo!..."
Eu entendi em 68 que a história detesta indefinições e que, nos países miseráveis, ela sempre se define pelo pior. O ano de 68 veio para facilitar a invasão multinacional torta que se chamou depois "milagre brasileiro".
Castelo Branco era "democrata" demais, ambíguo demais para ficar vivo naquela direita sinistra. (E penso hoje: resistirá a ambiguidade de FHC?)
Então, vi no outro canto da praia uma mulher morta, em decomposição, meio comida de peixes, uma mulher que podia ser um banco de areia, mas que era uma mulher morta, sim, me olhando com órbitas vazias, e eu murchando e inchando, os braços e pernas pulsantes.
Resolvi me salvar e correr para um lugar qualquer onde eu tivesse paz. E a grande lula de pernas moles correu até uma tendinha de beira de estrada, onde havia uns dez matutos velhos, uns pescadores tisnados de sol que me olhavam desconfiados e para quem eu não podia dar nenhuma "bandeira", não podia deixá-los ver que eu estava muito louco ali viajando num ácido político.
Dentro da venda, já estava um colega meu de viagem, um "hipongão" alto e magro vestido num improvável e quentíssimo casaco de ovelha, que delirava num comício espantoso sobre a vida e a morte para os boquiabertos pescadores, de cachaça na mão.
Eu entendi com horror que a política ia virar uma piada ridícula dali para frente, um pesadelo cômico, e entendi que hippie no Brasil não era um florido esperançoso, como nos países ricos; hippie, aqui, era uma espécie de exilado mental, um cassado da mente, um preso político solto na rua; entendi que o "desbunde" era perder o gás, perder a pose, perder a bunda, o desbunde não tinha o sentido "new age" de hoje -"que desbunde, que legal!"- , o desbunde era uma derrota, um suicídio branco, e eu entendi que, mais que a tortura, o que me dava pânico era a grande pasta gorda venenosa que ia me sufocar nos anos seguintes, um nada.
Um grande quartel vazio e triste ia me cobrir de gosma, se bem que isso eu entendi depois, pois agora a paisagem continuava a tremer, e a vendinha de beira de estrada ficou insuportável, e eu não tinha também ali nenhuma paz, pois os matutos pareciam rir de mim com escárnio, e eu fugi dali e voltei a andar pela praia e comecei a ouvir um fino e agudo ruído como uma broca e "vi-ouvi" a broca de uma das mais sutis torturas do DOI-Codi: um dentista militar abria o dente do infeliz e botava a broca diretamente no nervo vivo, o que faz você denunciar a própria mãe, e comecei a "ver-ouvir" outras torturas, como a dos choques elétricos com a música "As Curvas da Estrada de Santos", de Roberto Carlos, tocando bem alto, para abafar os gritos dos desgraçados.
Passei por outro companheiro de viagem, deitado dentro da lama verde do manguezal de onde voaram os urubus de chumbo, quietinho no brejo, só com a cabeça de fora; "maior barato", me disse ele; "barato e guerra", pensei eu, o Brasil estava dividido em "maior barato" e heróis suicidas, que se matavam na guerrilha, sem a mais remota chance de vitória, loucos como aquele ali deitado na lama.
E os urubus voltavam, batendo as asas pesadas, e eu entendi que um pedaço do Brasil tinha sido amputado pelos milicos e aderentes civis e eu vi a cara do Delfim Netto na areia da praia e a cara do Passarinho e a cara de Médici, e o meu companheiro da lama passou andando como um faquir dos Ganges pingando limo, e o doidão de casaco de ovelha passou gritando num incontrolável ataque de riso e lágrimas, discursando sobre a necessidade de os peixes se revoltarem contra os pescadores, e eu sentei de novo na areia molhada, e as ondas me lambiam as pernas de lula, as mãos de polvo, e eu me entreguei então à angústia sem resistência, no mais fundo desespero que senti, do qual me lembro até hoje.
Eu intuía, ali na praia, que alguma coisa se fechava para sempre, uma "alma de violino" se quebrava para sempre no Brasil, um buraco no tempo matava uma vocação brasileira pura que havia existido e que se apagava.
E digo isso hoje, dezembro de 98, com outro frio na alma também, e me parece que tentáculos trêmulos batem estas linhas no computador.
Sinto também (estarei muito louco?) que esta liberdade sem controle político, esta invasão das corporações globais, este mercado interno esquecido, tudo parece um Ato nş 5 sem rostos militares, mas que pode estar matando alguma outra coisa essencial que sobrou em nós, como aquelas que a ditadura matou, 30 anos atrás. É tudo verdade.



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