São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Conheço todos os sabores do meu filme"

DO ""LE MONDE", EM COPENHAGUE

No fundo de um antigo campo militar e atual base estratégica do cinema escandinavo, onde tremula uma bandeira negra com a inscrição "Filmbyen" (cidade do cinema), o escritório de Lars von Trier está instalado num antigo arsenal. Mas as únicas "armas" visíveis são uma máquina de fliperama e uma bicicleta ergométrica. E tampouco há qualquer coisa de militar na acolhida jovial dada pelo autor de uma nova bomba cinematográfica sob a forma do surpreendente "Dogville".

Pergunta - Rodado num set único, sem outra decoração senão indicações no chão e alguns acessórios, seu filme declara uma posição estilística marcante. Esta precedeu o relato ou é conseqüência dele?
Lars Von Trier -
Comecei por escolher a história. O primeiro "clique" foi o fato de jornalistas americanos terem me criticado por ter situado "Dançando no Escuro" nos EUA sem nunca ter ido para lá. Como se Hollywood fosse aos lugares que se mete a representar! Sou uma pessoa obstinada -essa é sem dúvida minha qualidade principal-, então decidi situar meus próximos filmes nos EUA. Este é situado nas Rochosas, o próximo será no Alabama.
Depois disso, pensei em "Jenny e os Piratas", a canção da "Ópera dos Três Vinténs" que conta uma história de vingança, exatamente o tipo de sentimento que minha mãe me ensinou a condenar. Apesar disso, ela adorava Bertolt Brecht. Pensei em minha mãe e em Brecht e isso me fez pensar numa espécie de mapa, de geografia abstrata. Foi assim que cheguei a esse estilo de direção. Se eu o tivesse escolhido de antemão, teria jogado mais, teria feito coisas mais hábeis a partir do fato de que os personagens não devem, supostamente, se ver, mas que nós os vemos a todos. O resultado teria sido mais sofisticado, menos interessante. A experiência me ensinou a não ser habilidoso demais. Detesto essa ideologia da eficácia, tão americana.

Pergunta - Ao mesmo tempo em que tem lugar na América da época da Lei Seca e da Depressão, o filme não se situa no imaginário ocidental? Você utiliza clichês (o povoado, os gangsters, a filha perdida, etc.) que o cinema difundiu no mundo.
Von Trier -
É claro que essa "América" é um espelho que tem por objetivo estimular a imaginação. Eu nunca filmei pessoas de maneira realista. Acho muito mais divertido, comovente e interessante inventar regras de jogo particulares. Mas, a partir disso, é preciso respeitar essas regras.

Pergunta - Em seus filmes anteriores, você se ressentiu do fato de precisar de cenário?
Von Trier -
Não. Mas o problema no cinema é que, dentro do quadro, tudo faz sentido. Ao conservar apenas os atores e alguns objetos de cena, posso me concentrar sobre aquilo que me interessa.

Pergunta - Mais uma vez você optou por uma câmera muito móvel.
Von Trier -
Gosto da câmera segurada na mão, por tudo o que ela capta de imprevisto. Não gosto de ter tudo sob controle. Não tenho vontade de compor quadros, detesto essa idéia de imagens construídas. O que eu quero é direcionar o olhar como um dedo que aponta para cá ou para lá.

Pergunta - Por que você mesmo quer segurar a câmera?
Von Trier -
Em primeiro lugar, para estar o mais perto possível dos atores. A vantagem da câmera de vídeo é que você pode rodar durante horas sem interrupção. Não faço cortes entre as tomadas -rodamos uma cena, conversamos, recomeçamos, e a câmera registra tudo. É como um jogo. É exaustivo, também, mas minha relação com o filme é muito diferente daquela de um diretor que permanece atrás de seu monitor. Ao segurar a câmera, sei de tudo o que filmei. Sou como um cozinheiro que sabe quando falta um pouco de tempero. Conheço todos os sabores de meu filme.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Jogo da Amarelinha
Próximo Texto: Cinema/estréias: Ela disse, ele disse
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.