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"DOGVILLE"
Fábula ataca fragilidade humana
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Se é para cultivar o sentimento
antiamericano, não há discussão: o filme é "Dogville".
Mas se é de cinema que se trata,
o filme de Lars von Trier tem muito para ser discutido. Desde a primeira imagem, "Dogville" nos
lança num cenário particular.
Não numa cidade, mas na planta
dela. Lá a ação vai se desenrolar.
Existe, desde o início, a voz de um
narrador -sinal de que o registro
de fábula, enunciado pela escolha
cenográfica, se consolidará.
A fábula se passa nos anos 1930
e gira em torno de Grace (Nicole
Kidman), que chega à cidade perseguida por gângsteres. O intelectual Tom Edison (Paul Bettany)
faz com que seus concidadãos a
recebam de modo cortês.
Edison não é o único nome com
estranhas ressonâncias. A menção a Thomas Edison é acompanhada por outras a Jason e Chuck,
personagens de séries de horror; a
rua principal é Elm Street -e
quem lembra de Freddy Kruger
sabe do que se trata.
Estamos em um filme de terror.
Não o de susto, mas outro mais
sub-reptício, que a convivência
entre Grace e os habitantes revelará a cada passo. Pois logo que os
gângsteres vão embora, a polícia
começa a fechar o cerco. Polícia,
bandidos, isso é uma coisa. Mas
não são eles que interessam a Von
Trier tanto como o americano
médio: é sua perversidade que começará a se mostrar.
"Dogville" vai um pouco mais
longe que "Dançando no Escuro"
na crítica aos EUA e suas instituições. Pois do começo até o surpreendente final Von Trier ataca a
fragilidade e a imperfeição humanas. O momento mais chocante
acontece nos créditos de encerramento, quando Von Trier introduz fotos tiradas nos anos 30.
São em geral retratos de pessoas
pobres e sofridas, como os habitantes de "Dogville". É tudo ambíguo: será a essas pessoas que se está julgando com brutalidade? A
elas que é negada a graça? A graça
de Grace? Ponto de vista pouco
indulgente com os EUA e com a
espécie humana. Ou será que Von
Trier está admitindo o esquematismo de sua construção? Hipótese menos provável, mas que torna
o filme mais atraente.
Dogville
Produção: Dinamarca/EUA, 2003
Direção: Lars von Trier
Com: Nicole Kidman, Harriet Andersson
Quando: a partir de hoje nos cines
Cinesesc, Lumière e circuito
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