São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

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"DOGVILLE"

Fábula ataca fragilidade humana

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Se é para cultivar o sentimento antiamericano, não há discussão: o filme é "Dogville".
Mas se é de cinema que se trata, o filme de Lars von Trier tem muito para ser discutido. Desde a primeira imagem, "Dogville" nos lança num cenário particular. Não numa cidade, mas na planta dela. Lá a ação vai se desenrolar. Existe, desde o início, a voz de um narrador -sinal de que o registro de fábula, enunciado pela escolha cenográfica, se consolidará.
A fábula se passa nos anos 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman), que chega à cidade perseguida por gângsteres. O intelectual Tom Edison (Paul Bettany) faz com que seus concidadãos a recebam de modo cortês.
Edison não é o único nome com estranhas ressonâncias. A menção a Thomas Edison é acompanhada por outras a Jason e Chuck, personagens de séries de horror; a rua principal é Elm Street -e quem lembra de Freddy Kruger sabe do que se trata.
Estamos em um filme de terror. Não o de susto, mas outro mais sub-reptício, que a convivência entre Grace e os habitantes revelará a cada passo. Pois logo que os gângsteres vão embora, a polícia começa a fechar o cerco. Polícia, bandidos, isso é uma coisa. Mas não são eles que interessam a Von Trier tanto como o americano médio: é sua perversidade que começará a se mostrar.
"Dogville" vai um pouco mais longe que "Dançando no Escuro" na crítica aos EUA e suas instituições. Pois do começo até o surpreendente final Von Trier ataca a fragilidade e a imperfeição humanas. O momento mais chocante acontece nos créditos de encerramento, quando Von Trier introduz fotos tiradas nos anos 30.
São em geral retratos de pessoas pobres e sofridas, como os habitantes de "Dogville". É tudo ambíguo: será a essas pessoas que se está julgando com brutalidade? A elas que é negada a graça? A graça de Grace? Ponto de vista pouco indulgente com os EUA e com a espécie humana. Ou será que Von Trier está admitindo o esquematismo de sua construção? Hipótese menos provável, mas que torna o filme mais atraente.


Dogville
  
Produção: Dinamarca/EUA, 2003
Direção: Lars von Trier
Com: Nicole Kidman, Harriet Andersson
Quando: a partir de hoje nos cines Cinesesc, Lumière e circuito



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