São Paulo, Sábado, 16 de Janeiro de 1999
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A última peça

GERALD THOMAS
de Nova York

A cena lembrava mais um filme sobre a Máfia. Cinco rapazes, em pé, aguardavam uma quentinha e não mexiam um só músculo facial. Plantados na entrada do restaurante (como se aquilo fosse um velório), não diziam uma só palavra.
Giuseppe, dono do melhor restaurante na pequena cidade italiana de Pontedera, andava pra lá e pra cá, freneticamente, agitava os braços, gritava com seus funcionários, entrava na cozinha e checava as panelas, infernizava a vida de todos os clientes e só relaxava quando a "quentinha" era entregue nas mãos de uma das não menos que cinco pessoas que a aguardavam.
"O Poncho (apelido carinhoso de Grotowski) hoje queria a comida dele mais cedo", desabafava Giuseppe, aliviado com a entrega da quentinha e o final, temporário, da cena macabra.
Também pudera, esses cinco rapazes estavam desde as sete da manhã fazendo exercícios fúnebres, workshops sobre os rituais da morte.
Mas isso tudo já faz quase uma década. Hoje o mundo do teatro, desde Susuki no Japão, Antunes no Brasil a Peter Brook em Paris, está de luto. Morreu o último (e na opinião de muitos, o único) grande revolucionário do teatro nessa última metade de século.
Morreu aquele que havia estendido os limites do teatro como nenhum outro. E não há quem possa negar a influência dele. Até mesmo a palavra "workshop", tão comum em meios teatrais, foi inventada por Jan Kott (outro dramaturgo polonês, amigo e colaborador de Grotowski), a partir dos exercícios físicos -e da utilização somente do corpo e dos gestos como forma de manifestação teatral- inventados por Grotowski.
Ele odiava a palavra. "É por causa dela que nascem todos os mal-entendidos da humanidade", dizia Grotowski, diariamente, ao introduzir sua maratona diária em Pontedera, onde decidira estabelecer seu centro de pesquisas teatrais.
"A palavra só serve pra evitar a comunicação", prosseguia ele na frente de uma turma de devotos fixados, "e sua pobreza é tão óbvia que todas as guerras terminam com milhares de corpos mortos, mudos, espalhados pelo chão."
Nunca vou me esquecer do impacto que essa frase teve sobre mim, que passei oito meses em Pontedera em 1991, dirigindo o seu grupo. Grotowski estava, na verdade, havia anos, encenando seu próprio funeral. Obcecado pela morte, como qualquer cidadão da Europa Central, a vida e obra desse ser genial foi dedicada a escapar dela.
Seu teatro era um eterno pensamento em torno do materialismo e da insignificância dos valores materiais na vida dos seres humanos. Ainda no início da década, chegou ao extremo de considerar o próprio ato teatral, com lugar fixo, hora marcada e ingresso pago, um ato materialista deplorável.
Por isso, estava se dedicando ao estudo de suas próprias obsessões fechado, enclausurado nessa cidadela onde ninguém poderia vê-lo. Hoje Grotowski conseguiu, finalmente, estrear essa peça que ensaiava havia anos, décadas.
E, assim como ele mesmo queria, o fará sozinho, exilado como sempre foi, e ninguém poderá ter o privilégio de assisti-lo.


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