São Paulo, Sábado, 16 de Janeiro de 1999
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Receitas só têm poder sobre quem estiver propenso

JOSIMAR MELO
especial para a Folha

Tenho em casa alguns livros de receitas afrodisíacas. O que quase todos têm em comum é que pretendem ser levados a sério. Acreditam naquilo que dizem (bem, o autor talvez não; mas nada nos textos indica um suposto ceticismo).
Isabel Allende, ao aventurar-se exatamente nessa seara de comidas que estimulam o sexo, enche os leitores de uma prosa bem-humorada, poética e sedutora -mas livrou-se imediatamente do pecado original: antes de mais nada, ela escreve, com todas as letras, que, no fundo, não aposta um vintém nos poderes supostamente miraculosos dos pratos que lista.
Conta ela que os autores resolveram "mensurar a potência afrodisíaca das receitas (...). Recorremos a voluntários de ambos os sexos e diversas raças, maiores de 40 anos, pois até uma infusão de camomila estimula os mais jovens, o que confundiria nossas estatísticas. Depois de convidá-los para jantar e observar sua conduta, medimos e anotamos os resultados (...)".
"Os amigos que desfrutaram dos afrodisíacos informados do seu poder revelaram pensamentos deliciosos, impulsos velozes, arroubos de imaginação perversa e conduta sigilosa, mas os que nunca souberam do experimento devoraram os alimentos sem mudanças aparentes. Em uma outra ocasião bastou deixar o manuscrito em cima da mesa, com o título bem visível, para seu poder afrodisíaco surtir efeitos: os comensais começaram a mordiscar as orelhas uns dos outros antes mesmo de o jantar ser servido."
Se alguns alimentos têm substâncias que indiretamente agem sobre sensores e estimulantes sexuais do corpo, não se tem conhecimento de nenhum que, ingerido como parte de uma refeição, produza efeitos imediatos. Enquanto que uma série de outros fatores, que podem ou não estar em torno da refeição, podem ser potentes indutores de fantasias eróticas.
Se, como no caso dos "pilotos de prova" da autora, o que vale é a predisposição para sentir as decorrências afrodisíacas, mais do que aquilo que se come, o mais importante é criar, desde o momento do convite, o clima indicativo das intenções que permeiam a refeição. Feito isso, a comida será coadjuvante: pode ser sugestiva, leve, ou, pelo contrário, elaborada. Dependerá do estilo dos parceiros.
Receitas do livro como as reproduzidas acima, por exemplo, podem incendiar a imaginação de quem estiver propenso a elas. Mas até mesmo um "jantar" sem comida, abastecido só de palavras, pode surtir o mesmo efeito.
Por exemplo: o relato do encontro de uma amiga "new age" com um pretendente escolhido num anúncio de jornal, se lido em voz alta e a dois, pode valer mais que uma tonelada das ostras utilizadas por Casanova. Com o único inconveniente de que as gargalhadas que ele provocará talvez distraiam demais os amantes de seu objetivo.


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