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Receitas só têm poder sobre quem estiver propenso
JOSIMAR MELO
especial para a Folha
Tenho em casa alguns livros de
receitas afrodisíacas. O que quase
todos têm em comum é que pretendem ser levados a sério. Acreditam naquilo que dizem (bem, o autor talvez não; mas nada nos textos
indica um suposto ceticismo).
Isabel Allende, ao aventurar-se
exatamente nessa seara de comidas que estimulam o sexo, enche
os leitores de uma prosa bem-humorada, poética e sedutora -mas
livrou-se imediatamente do pecado original: antes de mais nada, ela
escreve, com todas as letras, que,
no fundo, não aposta um vintém
nos poderes supostamente miraculosos dos pratos que lista.
Conta ela que os autores resolveram "mensurar a potência afrodisíaca das receitas (...). Recorremos
a voluntários de ambos os sexos e
diversas raças, maiores de 40 anos,
pois até uma infusão de camomila
estimula os mais jovens, o que confundiria nossas estatísticas. Depois
de convidá-los para jantar e observar sua conduta, medimos e anotamos os resultados (...)".
"Os amigos que desfrutaram dos
afrodisíacos informados do seu
poder revelaram pensamentos deliciosos, impulsos velozes, arroubos de imaginação perversa e conduta sigilosa, mas os que nunca
souberam do experimento devoraram os alimentos sem mudanças
aparentes. Em uma outra ocasião
bastou deixar o manuscrito em cima da mesa, com o título bem visível, para seu poder afrodisíaco surtir efeitos: os comensais começaram a mordiscar as orelhas uns dos
outros antes mesmo de o jantar ser
servido."
Se alguns alimentos têm substâncias que indiretamente agem
sobre sensores e estimulantes sexuais do corpo, não se tem conhecimento de nenhum que, ingerido
como parte de uma refeição, produza efeitos imediatos. Enquanto
que uma série de outros fatores,
que podem ou não estar em torno
da refeição, podem ser potentes indutores de fantasias eróticas.
Se, como no caso dos "pilotos de
prova" da autora, o que vale é a
predisposição para sentir as decorrências afrodisíacas, mais do que
aquilo que se come, o mais importante é criar, desde o momento do
convite, o clima indicativo das intenções que permeiam a refeição.
Feito isso, a comida será coadjuvante: pode ser sugestiva, leve, ou,
pelo contrário, elaborada. Dependerá do estilo dos parceiros.
Receitas do livro como as reproduzidas acima, por exemplo, podem incendiar a imaginação de
quem estiver propenso a elas. Mas
até mesmo um "jantar" sem comida, abastecido só de palavras, pode
surtir o mesmo efeito.
Por exemplo: o relato do encontro de uma amiga "new age" com
um pretendente escolhido num
anúncio de jornal, se lido em voz
alta e a dois, pode valer mais que
uma tonelada das ostras utilizadas
por Casanova. Com o único inconveniente de que as gargalhadas que
ele provocará talvez distraiam demais os amantes de seu objetivo.
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