São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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NELSON ASCHER

Os americanos são de Marte, os europeus, de Vênus

É hora de parar de fazer de conta que europeus e americanos compartilham uma visão comum de mundo ou até que coexistem no mesmo mundo." Assim principia a mais importante análise do fosso que, após 11 de setembro de 2001, abriu-se entre os dois lados do Atlântico Norte. Seu autor, o norte-americano Robert Kagan, ex-funcionário do Departamento de Estado e atualmente colunista do "Washington Post", esboçou a idéia primeiro num artigo, "Power and Weakness" (Poder e Fraqueza, Policy Review, Junho de 2002) e, em seguida, desenvolveu-a num pequeno livro "Of Paradise and Power" (Do Paraíso e do Poder) que, publicado pela Knopf em janeiro do ano passado (e pela Rocco no Brasil), acaba de sair pela Vintage com um extenso posfácio.
Segundo o ensaísta, enquanto a Europa julga viver num mundo pós-moderno onde já se consolidou a "paz perpétua", conceito que toma de Kant, os EUA sabem que habitam uma selva na qual, como disse Thomas Hobbes, prevalece a luta de todos contra todos. O Velho Mundo, extrapolando a partir de suas experiências recentes, acreditaria que, tendo superado os conflitos agudos, o planeta alcançou um estado de pacificação racional no qual a ordem se fundamentaria nas soluções consensuais e na lei internacional.
Quanto à superpotência que emergiu vitoriosa da Guerra Fria, para esta o quadro continuaria o que sempre foi, com os riscos e perigos preservados ou crescentes. Kagan enfatiza que está lançando mão de uma simplificação didática que ele encapsula numa fórmula inspirada pelos manuais de auto-ajuda para corações solitários: "Hoje, nas principais questões estratégicas e internacionais, os americanos são de Marte, os europeus de Vênus". Entre o ensaio original e a primeira edição do livro, por um lado, e sua segunda edição, por outro, está a campanha do Iraque, um acontecimento que, ao mesmo tempo, confirmou as teses propostas e as problematizou.
Ninguém melhor do que o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger esmiuçou a curiosa amnésia que levou os habitantes da Europa a se esquecerem de que, poucas décadas atrás, Roma se parecia com Kigali, Paris com Saigon e Berlim com Beirute. É por causa desta desmemória que seus cidadãos não fazem muita questão de recordarem que o presente sossego decorre da intervenção e posterior tutela americana provocada pela incessante propensão continental não apenas a praticar o haraquiri coletivo, como a arrastar junto o resto da humanidade. Perdendo poder e influência, mas não a pose, franceses, alemães e seus vizinhos consideram-se hoje em dia autorizados a dar lições de civilidade e civilização a todo um rol de "bárbaros" encabeçado, obviamente, pelo seu salva-vidas.
Segundo "Do Paraíso e Poder", foi só a bolha protetora com que Washington recobriu a Europa ocidental que permitiu a esta se estabilizar sem medo de ser incorporada ao império soviético. Dissolvido este, Paris, Berlim e outras capitais, não precisando mais do guarda-chuva nuclear do aliado, resolveram voltar a um velho hábito, ou seja, o de dar as cartas. O abismo em termos militares, porém, tornara-se insuperável, sobretudo para economias estagnadas e comprometidas com inesgotáveis benefícios sociais. Contornando tais obstáculos, o Velho Mundo investiu em algo mais em conta: "soft power" (poder suave), algo que se materializou em instituições preexistentes (como a ONU), renovadas ou recém-criadas (como o Tribunal Internacional Criminal), na elaboração de acordos ou tratados e tanto na compra efetiva de influência junto aos países pobres quanto no financiamento mais ou menos sub-reptício de uma legião de organizações (nem sempre tão) não-governamentais.
O objetivo de tanto empenho consistia, a crermos na interpretação americana, em amarrar a hiperpotência gulliveriana com uma infinidade de barbantes tecidos pelos liliputianos continentais. Durante a ilusória calmaria dos anos 90 o estratagema chegou a dar sinais de sucesso. Os europeus mal e mal concordavam, mesmo assim a contragosto, em deixar os bombeiros agirem quando o fogo estava em seu quintal: nos Bálcãs. E, no ínterim, com a ajuda do Cavalo de Tróia construído em Oslo, procuraram desmontar gradualmente o grande empecilho à uma aliança estratégica com o mundo islâmico, isto é, Israel, utilizando aquilo que o ditador húngaro Máttyás Rákosi batizara inesquecivelmente de "tática do salame".
Infelizmente para Chirac, Schroeder e seus satélites, os fundamentalistas islâmicos, impacientes com o exercício vagaroso de "soft power", acabaram se precipitando e demoliram em horas um edifício geopolítico que vinha sendo arquitetado desde pelos menos 1973 e construído há mais de dez anos. Compelidos a colocarem em funcionamento uma maquinaria não devidamente finalizada nem testada, a Velha Europa, além de falhar em seu projeto de controlar a política externa dos EUA, revelou seu jogo, causando também danos profundos à sua prótese de poder, a União Européia.
O novo posfácio do autor aborda justamente esse tema, a saber, como ao poderio militar e à pujança econômica norte-americana a Europa tentou retrucar com uma espécie de monopólio da legitimidade internacional. Sua observação mais perspicaz é a de que, embora esse tipo de legitimidade nada diga à maioria dos países que são, afinal tiranias, ela é importante para os cidadãos de nações democráticas e, portanto, se os europeus insistirem na sua campanha de deslegitimização do poder americano (do qual seguem dependendo), a perdedora, dos dois lados do mar-oceano, será a democracia.


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