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NELSON ASCHER
Os americanos são de Marte, os europeus, de Vênus
É hora de parar de fazer de
conta que europeus e americanos compartilham uma visão
comum de mundo ou até que coexistem no mesmo mundo." Assim
principia a mais importante análise do fosso que, após 11 de setembro de 2001, abriu-se entre os dois
lados do Atlântico Norte. Seu autor, o norte-americano Robert
Kagan, ex-funcionário do Departamento de Estado e atualmente
colunista do "Washington Post",
esboçou a idéia primeiro num artigo, "Power and Weakness" (Poder e Fraqueza, Policy Review, Junho de 2002) e, em seguida, desenvolveu-a num pequeno livro
"Of Paradise and Power" (Do Paraíso e do Poder) que, publicado
pela Knopf em janeiro do ano
passado (e pela Rocco no Brasil),
acaba de sair pela Vintage com
um extenso posfácio.
Segundo o ensaísta, enquanto a
Europa julga viver num mundo
pós-moderno onde já se consolidou a "paz perpétua", conceito
que toma de Kant, os EUA sabem
que habitam uma selva na qual,
como disse Thomas Hobbes, prevalece a luta de todos contra todos. O Velho Mundo, extrapolando a partir de suas experiências
recentes, acreditaria que, tendo
superado os conflitos agudos, o
planeta alcançou um estado de
pacificação racional no qual a ordem se fundamentaria nas soluções consensuais e na lei internacional.
Quanto à superpotência que
emergiu vitoriosa da Guerra Fria,
para esta o quadro continuaria o
que sempre foi, com os riscos e perigos preservados ou crescentes.
Kagan enfatiza que está lançando mão de uma simplificação didática que ele encapsula numa
fórmula inspirada pelos manuais
de auto-ajuda para corações solitários: "Hoje, nas principais questões estratégicas e internacionais,
os americanos são de Marte, os
europeus de Vênus". Entre o ensaio original e a primeira edição
do livro, por um lado, e sua segunda edição, por outro, está a
campanha do Iraque, um acontecimento que, ao mesmo tempo,
confirmou as teses propostas e as
problematizou.
Ninguém melhor do que o poeta
e ensaísta alemão Hans Magnus
Enzensberger esmiuçou a curiosa
amnésia que levou os habitantes
da Europa a se esquecerem de
que, poucas décadas atrás, Roma
se parecia com Kigali, Paris com
Saigon e Berlim com Beirute. É
por causa desta desmemória que
seus cidadãos não fazem muita
questão de recordarem que o presente sossego decorre da intervenção e posterior tutela americana
provocada pela incessante propensão continental não apenas a
praticar o haraquiri coletivo, como a arrastar junto o resto da humanidade. Perdendo poder e influência, mas não a pose, franceses, alemães e seus vizinhos consideram-se hoje em dia autorizados a dar lições de civilidade e civilização a todo um rol de "bárbaros" encabeçado, obviamente,
pelo seu salva-vidas.
Segundo "Do Paraíso e Poder",
foi só a bolha protetora com que
Washington recobriu a Europa
ocidental que permitiu a esta se
estabilizar sem medo de ser incorporada ao império soviético. Dissolvido este, Paris, Berlim e outras
capitais, não precisando mais do
guarda-chuva nuclear do aliado,
resolveram voltar a um velho hábito, ou seja, o de dar as cartas. O
abismo em termos militares, porém, tornara-se insuperável, sobretudo para economias estagnadas e comprometidas com inesgotáveis benefícios sociais. Contornando tais obstáculos, o Velho
Mundo investiu em algo mais em
conta: "soft power" (poder suave),
algo que se materializou em instituições preexistentes (como a
ONU), renovadas ou recém-criadas (como o Tribunal Internacional Criminal), na elaboração de
acordos ou tratados e tanto na
compra efetiva de influência junto aos países pobres quanto no financiamento mais ou menos sub-reptício de uma legião de organizações (nem sempre tão) não-governamentais.
O objetivo de tanto empenho
consistia, a crermos na interpretação americana, em amarrar a
hiperpotência gulliveriana com
uma infinidade de barbantes tecidos pelos liliputianos continentais. Durante a ilusória calmaria
dos anos 90 o estratagema chegou
a dar sinais de sucesso. Os europeus mal e mal concordavam,
mesmo assim a contragosto, em
deixar os bombeiros agirem
quando o fogo estava em seu
quintal: nos Bálcãs. E, no ínterim,
com a ajuda do Cavalo de Tróia
construído em Oslo, procuraram
desmontar gradualmente o grande empecilho à uma aliança estratégica com o mundo islâmico,
isto é, Israel, utilizando aquilo
que o ditador húngaro Máttyás
Rákosi batizara inesquecivelmente de "tática do salame".
Infelizmente para Chirac,
Schroeder e seus satélites, os fundamentalistas islâmicos, impacientes com o exercício vagaroso
de "soft power", acabaram se precipitando e demoliram em horas
um edifício geopolítico que vinha
sendo arquitetado desde pelos
menos 1973 e construído há mais
de dez anos. Compelidos a colocarem em funcionamento uma maquinaria não devidamente finalizada nem testada, a Velha Europa, além de falhar em seu projeto
de controlar a política externa
dos EUA, revelou seu jogo, causando também danos profundos
à sua prótese de poder, a União
Européia.
O novo posfácio do autor aborda justamente esse tema, a saber,
como ao poderio militar e à pujança econômica norte-americana a Europa tentou retrucar com
uma espécie de monopólio da legitimidade internacional. Sua observação mais perspicaz é a de
que, embora esse tipo de legitimidade nada diga à maioria dos
países que são, afinal tiranias, ela
é importante para os cidadãos de
nações democráticas e, portanto,
se os europeus insistirem na sua
campanha de deslegitimização
do poder americano (do qual seguem dependendo), a perdedora,
dos dois lados do mar-oceano, será a democracia.
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