São Paulo, Terça-feira, 16 de Fevereiro de 1999
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Não há corrente predominante na nova safra de compositores do país

especial para a Folha

Custos baixos e almas heróicas vêm provocando uma grande mudança na discografia da música contemporânea brasileira. Até pouco tempo, praticamente não havia registros da produção dos compositores, salvo exceções, como os discos do Grupo Novo Horizonte, ou o registro dos festivais de música eletroacústica do estúdio Panaroma de São Paulo. De quase nada até quase tudo é um longo e improvável caminho; mas a situação, quem diria, melhorou.
A distribuição permanece um problema, mas com um pouco de esforço e um pouco de sorte já se pode ter uma idéia do que vem sendo composto e tocado no país.
A amostragem é variada e inclui desde a série de mini-CDs "Música Eletrônica 90s", inaugurada pela "Ballade Dure", de Jorge Antunes, até a coletânea "Poesia Paulista", reunindo 12 canções de José Augusto Mannis, Eduardo Guimarães Álvares e Achille Pichi, num projeto idealizado por Dante Pignatari.
Cabe mencionar ainda o esforço recente de grupos brasileiros não só na criação da música nova, mas também na recriação da antiga, nem por isso melhor conhecida.
Exemplos são o CD (selo Paulus) da Camerata Novo Horizonte, regida por Graham Griffiths, interpretando o "Officium 1816", do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), e "Chiquinha Gonzaga por Clara Sverner" (Ergo), lançado no momento oportuno em que a Rede Globo exibe sua minissérie sobre a primeira regente e feminista pioneira do país.
Seria injusto, nesse contexto, não chamar a atenção, também, para o CD do Quinteto D'Elas (Paulus), que interpreta peças da esquecida compositora francesa Louise Farrenc (1804-75).
Voltando à música contemporânea, dois discos merecem destaque. "Prelúdios em Porto Alegre", da pianista Luciane Cardassi, reúne peças de oito compositores, começando com os três "Sonhos", de Armando Albuquerque (1901-86), mestre de três gerações de compositores porto-alegrenses, e chegando até Fernando Mattos, James Correa e Lourdes Saraiva, todos nascidos na década de 60.
"Round About Debussy", de Flávio Oliveira (1944), é uma espécie de fantasmagoria musical: Debussy sem música, os gestos mais característicos do compositor francês repetidos no vazio de seu futuro, roubados de sentido.
"Terra Selvagem", de Bruno Kiefer (1923-87), faz companhia aos "Sonhos", de Albuquerque, embora num idioma mais moderno. Para os gaúchos, os dois nomes vão quase sempre juntos: são os patriarcas de uma tradição "in progress".
O maior responsável pela transmissão e transformação desse legado é Celso Loureiro Chaves (1950). Seu "Estudo Paulistano", escrito no ano passado, é um exercício virtuosístico para mão esquerda, que parte de uma citação de Benjamin Britten e percorre uma mini-odisséia da memória, com direito a excursões pelo bairro judaico do Bom Fim e pelos tiroteios das ruas do Rio de Janeiro.
Tudo somado, é um disco irregular, oscilando entre peças mais maduras, como essas, e prelúdios para uma outra música que ainda não chegou. Luciana Cardassi tem mais segurança do que fantasia, mas está bem à vontade no repertório. A idéia do disco é, no mínimo, digna de elogio e a sua mera realização um alento. Oxalá houvesse mais projetos como esse.
Outro disco que merece ser ouvido é a coleção de "Bazulaques Brasileiros", de Livio Tragtenberg e Marcelo Brissac. São 12 peças para piano preparado, para quatro mãos, mais uma suíte de composições eletroacústicas, todas de 1991. Pergunta legítima: que sentido faz hoje "preparar" um piano (prender parafusos, pregos etc. entre as cordas) à maneira clássica de John Cage na década de 40? Resposta legítima: por que não se o instrumento servir como instrumento, e não como fim? Tragtenberg e Brissac fazem do seu piano um objeto não-identificado da percussão brasileira e traduzem as "Sonatas e Interlúdios" de Cage para um ambivalente paraíso tropical.
Sem pretensão de maior originalidade, o disco é simpático e bem-humorado. Mais badulaques do que bazucas, embora a proporção tenda a se inverter nas peças para fita magnética, que são mais ambiciosas e menos interessantes.
Que cada disco desses seja tão diferente dos outros só pode ser um bom sinal: não há uma corrente predominante na música contemporânea brasileira, e cada um está livre para compor como quiser. Livre para compor: nada mais difícil, para qualquer compositor novo, achando sua voz no meio da geléia geral. Livre para ser ouvido: uma educação necessária para todos, compositores e ouvintes. Que venham mais CDs. (AN)

Disco: Prelúdios em Porto Alegre (independente)
Pianista: Luciane Cardassi
Quanto: R$ 18, em média
Disco: Bazulaques Brasileiros
Lançamento: DMM
Quanto: R$ 18, em média


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