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LIVROS/LANÇAMENTOS
"NENHUMA PAIXÃO DESPERDIÇADA"
Obra analisa textos dos grandes pilares da literatura produzida no Ocidente
George Steiner une clareza a fervor espiritual
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
As maiores injustiças, disse
alguém, são aquelas que não
sabemos ter cometido. Lendo este
grande livro de ensaios de George
Steiner, tenho a lembrança incerta de já ter sido bastante injusto
com ele, em alguma resenha pregressa.
Alguns livros de Steiner já publicados em português -"O Castelo de Barba-Azul", "Linguagem
e Silêncio", "Extraterritorial"- deixaram-me a impressão de
que se tratava de um intelectual
sério e culto, mas não muito notável pela originalidade. Como se,
de algum modo, se sentisse obrigado a ter mais opiniões do que
era capaz. A falta de opiniões por
vezes se disfarça com doses de estilo literário; o de Steiner é algo
monocórdico e fanhoso.
Outra maneira de dizer isso seria notar que Steiner é civilizado
demais para ter opiniões, para fazer piruetas estilísticas, e que, como intelectual, nunca faz da própria cultura um pretexto para a
falta de educação.
Seja como for, em "Nenhuma
Paixão Desperdiçada", Steiner
não perde muito tempo procurando o que dizer. Os ensaios deste livro, escritos entre 1978 e 1995,
não parecem resultar da obrigação de "intervir no debate cultural". Steiner está mais livre para
dedicar-se ao prazer de suas leituras (Shakespeare, as traduções inglesas de Homero, a Bíblia, Kierkegaard) e ao útil trabalho de
compartilhá-las conosco.
Os momentos de "intervenção"
deste livro são afortunadamente
raros. Na conferência intitulada
"Presenças Verdadeiras", Steiner
ataca as modas recentes da teoria
literária com argumentos mais
sentenciosos do que sólidos, num
tom mais impaciente do que sarcástico; chega, afinal, a uma conclusão insossa: "O ladrar irônico
da desconstrução continuará a ser
ouvido no meio da noite, mas a
caravana do "senso comum" não
deixará de passar".
O primeiro texto, "O Leitor Incomum", põe a perder uma sensível análise do quadro "Le Philosophe Lisant", de Chardin, com lamúrias a respeito do fim dos livros encadernados. "O fólio, a biblioteca particular, a intimidade
com as línguas clássicas", consterna-se o autor, "pertencerão, cada
vez mais, a umas poucas pessoas
muito especializadas". É de perguntar se em algum momento
histórico isso foi diferente.
A veemência de alguns trechos
se origina mais do esnobismo do
que da convicção: para Steiner,
quem encontra algum erro tipográfico num livro e não o corrige
de lápis em punho "não é um simples filisteu da cultura: é um perjuro do espírito e da razão".
A partir do longo "Prefácio para
a Bíblia Hebraica", entretanto, este livro adquire muito mais amplitude. Mostrando uma erudição
que está sempre a serviço do leitor, e não da própria vaidade, Steiner aponta determinado capítulo
do livro de Samuel como sendo
uma das passagens "mais aflitivas
de toda a literatura"; fala sem pedantismo das peculiaridades dos
tempos verbais em hebraico, e
não raro se entrega à mais sincera
e humilde admiração, como no
trecho que cito a seguir.
"O que me é absolutamente impossível de imaginar", diz Steiner,
"é o autor das falas de Deus a Jó na
tempestade, de muito do que está
contido no "Qoheleth", de certos
Salmos ou de uma boa parte do
"Segundo Isaías". A imagem de algum homem ou mulher almoçando ou jantando depois de ter "inventado" e escrito esses e vários
outros textos bíblicos deixa-me
absolutamente perplexo."
O dom de Steiner para a admiração literária está sempre a um
passo do sentimento religioso. Esta predisposição funciona quase
como o fio condutor de "Nenhuma Paixão Desperdiçada": falando de Péguy, de Simone Weil, do
judaísmo, das mortes de Sócrates
e de Jesus, o autor alcança notas
de grande intensidade, sem ser
nunca passional ou místico.
Talvez seja esta a maior virtude
de Steiner: muito distante de
qualquer convicção religiosa, é
como se suas leituras e análises
combinassem as características
civis da objetividade e da clareza
com uma espécie de fervor espiritual. Mas um fervor modesto, autêntico, sem pose, sem histeria, e
mesmo... sem fé, se posso dizer
assim. Os melhores ensaios deste
livro não são simples intervenções, críticas ou "leituras", como
se diz, mas sim uma espécie de
testemunho pessoal: vêm generosamente dividir conosco uma
longa e prazerosa experiência de
dedicação à literatura.
Nenhuma Paixão Desperdiçada
Autor: George Steiner
Tradutor: Maria Alice Máximo
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (420 págs.)
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