São Paulo, sábado, 16 de março de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"NENHUMA PAIXÃO DESPERDIÇADA"

Obra analisa textos dos grandes pilares da literatura produzida no Ocidente

George Steiner une clareza a fervor espiritual

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

As maiores injustiças, disse alguém, são aquelas que não sabemos ter cometido. Lendo este grande livro de ensaios de George Steiner, tenho a lembrança incerta de já ter sido bastante injusto com ele, em alguma resenha pregressa.
Alguns livros de Steiner já publicados em português -"O Castelo de Barba-Azul", "Linguagem e Silêncio", "Extraterritorial"- deixaram-me a impressão de que se tratava de um intelectual sério e culto, mas não muito notável pela originalidade. Como se, de algum modo, se sentisse obrigado a ter mais opiniões do que era capaz. A falta de opiniões por vezes se disfarça com doses de estilo literário; o de Steiner é algo monocórdico e fanhoso.
Outra maneira de dizer isso seria notar que Steiner é civilizado demais para ter opiniões, para fazer piruetas estilísticas, e que, como intelectual, nunca faz da própria cultura um pretexto para a falta de educação.
Seja como for, em "Nenhuma Paixão Desperdiçada", Steiner não perde muito tempo procurando o que dizer. Os ensaios deste livro, escritos entre 1978 e 1995, não parecem resultar da obrigação de "intervir no debate cultural". Steiner está mais livre para dedicar-se ao prazer de suas leituras (Shakespeare, as traduções inglesas de Homero, a Bíblia, Kierkegaard) e ao útil trabalho de compartilhá-las conosco.
Os momentos de "intervenção" deste livro são afortunadamente raros. Na conferência intitulada "Presenças Verdadeiras", Steiner ataca as modas recentes da teoria literária com argumentos mais sentenciosos do que sólidos, num tom mais impaciente do que sarcástico; chega, afinal, a uma conclusão insossa: "O ladrar irônico da desconstrução continuará a ser ouvido no meio da noite, mas a caravana do "senso comum" não deixará de passar".
O primeiro texto, "O Leitor Incomum", põe a perder uma sensível análise do quadro "Le Philosophe Lisant", de Chardin, com lamúrias a respeito do fim dos livros encadernados. "O fólio, a biblioteca particular, a intimidade com as línguas clássicas", consterna-se o autor, "pertencerão, cada vez mais, a umas poucas pessoas muito especializadas". É de perguntar se em algum momento histórico isso foi diferente.
A veemência de alguns trechos se origina mais do esnobismo do que da convicção: para Steiner, quem encontra algum erro tipográfico num livro e não o corrige de lápis em punho "não é um simples filisteu da cultura: é um perjuro do espírito e da razão".
A partir do longo "Prefácio para a Bíblia Hebraica", entretanto, este livro adquire muito mais amplitude. Mostrando uma erudição que está sempre a serviço do leitor, e não da própria vaidade, Steiner aponta determinado capítulo do livro de Samuel como sendo uma das passagens "mais aflitivas de toda a literatura"; fala sem pedantismo das peculiaridades dos tempos verbais em hebraico, e não raro se entrega à mais sincera e humilde admiração, como no trecho que cito a seguir.
"O que me é absolutamente impossível de imaginar", diz Steiner, "é o autor das falas de Deus a Jó na tempestade, de muito do que está contido no "Qoheleth", de certos Salmos ou de uma boa parte do "Segundo Isaías". A imagem de algum homem ou mulher almoçando ou jantando depois de ter "inventado" e escrito esses e vários outros textos bíblicos deixa-me absolutamente perplexo."
O dom de Steiner para a admiração literária está sempre a um passo do sentimento religioso. Esta predisposição funciona quase como o fio condutor de "Nenhuma Paixão Desperdiçada": falando de Péguy, de Simone Weil, do judaísmo, das mortes de Sócrates e de Jesus, o autor alcança notas de grande intensidade, sem ser nunca passional ou místico.
Talvez seja esta a maior virtude de Steiner: muito distante de qualquer convicção religiosa, é como se suas leituras e análises combinassem as características civis da objetividade e da clareza com uma espécie de fervor espiritual. Mas um fervor modesto, autêntico, sem pose, sem histeria, e mesmo... sem fé, se posso dizer assim. Os melhores ensaios deste livro não são simples intervenções, críticas ou "leituras", como se diz, mas sim uma espécie de testemunho pessoal: vêm generosamente dividir conosco uma longa e prazerosa experiência de dedicação à literatura.


Nenhuma Paixão Desperdiçada     
Autor: George Steiner
Tradutor: Maria Alice Máximo
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (420 págs.)




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