São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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"A QUALQUER PREÇO"
Só os atores salvam

FERNANDO BONASSI
Colunista da Folha

O Direito talvez seja a produção cultural mais civilizada desse mundo sem vergonha. Não falo de seu uso prático, nesse troço ambíguo chamado "sistema judiciário", mas da idéia que o fundamentou.
Uma vez que, por ação ou omissão, escolhemos viver em coletividade, partilhar regras parece inevitável. Problemas? Discutamos qual das partes está em desacordo com o estabelecido por todos! Simples e bonito, não é? Só que se trata de pura fantasia. O mundo real é o da pressão econômica, de presidentes eleitos por multinacionais, de prefeitos eleitos por marreteiros e empreiteiras, de juízes corrompidos, de arranjos, acertos e assim por diante... Aliás, nós brasileiros sabemos disso como poucos!
"A Qualquer Preço" trata dessa conversa, entre o direito e o justo...
Era uma vez um advogado que só enxergava honorários, mas, progressivamente, vai tendo seu coração materialista amolecido pelo drama de crianças envenenadas pela água contaminada por uma grande corporação.
Parece imbecil. E é. Poderia ser pior? Sempre, com a graça de Deus. Acontece que, independentemente de sua vocação para o melodrama, a indústria cinematográfica não pode mais dar-se ao luxo de produzir apenas para os imbecis completos. O ensino médio criou uma massa de covardes cínicos, também conhecidos como "consumidores" ou "clientes", que demandam de roteiristas e escritores condimentar o molho de suas historinhas com doses estudadas de relativo sarcasmo.
Aqui está o que torna o filme menos intragável... O que ele tem de melhor está justamente onde a trama da justiça parece não funcionar, apesar do protestantismo. As reflexões do advogado Sehliehtmann (John Travolta), bem como as aulas de seu oponente de tribunal, o professor Facher (Robert Duvall), deixam escapar o que o filme "poderia ser". Aliás, o brilho desses atores também prova a teoria de que qualquer panaca pode dirigir um filme narrativo de consistência, desde que amparado num elenco decente e num roteiro minimamente articulado.
Mas o que "poderia ser" não existe para um filme acabado. Essa mesma indústria cinematográfica, que não pode ser mais tão idiota (tarefa agora assumida pelas televisões Broadcasting), passa longe de ser ousada.
No final, ainda que por caminhos tortuosos, a justiça americana triunfa galhardamente, pondo os capitalistas inescrupulosos em seu lugar (o de pagadores de indenização). O mundo volta à normalidade de seu massacre cotidiano.
Seria uma piada de bom gosto, não houvesse quem levasse o absurdo à sério. Bem, pode até ser um consolo que em algum lugar alguém acredite nesse tipo de coisa, sei lá. Uma veleidade que, por aqui, não possuímos mais.


Avaliação:



Filme: A Qualquer Preço
Produção: EUA, 1998 Direção: Steven Zaillian
Com: John Travolta, Robert Duvall
Quando: a partir de hoje nos cines Astor, Eldorado 6 e circuito



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