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"A QUALQUER PREÇO"
Só os atores salvam
FERNANDO BONASSI
Colunista da Folha
O Direito talvez seja a produção
cultural mais civilizada desse
mundo sem vergonha. Não falo de
seu uso prático, nesse troço ambíguo chamado "sistema judiciário",
mas da idéia que o fundamentou.
Uma vez que, por ação ou omissão, escolhemos viver em coletividade, partilhar regras parece inevitável. Problemas? Discutamos qual
das partes está em desacordo com
o estabelecido por todos! Simples e
bonito, não é? Só que se trata de
pura fantasia. O mundo real é o da
pressão econômica, de presidentes
eleitos por multinacionais, de prefeitos eleitos por marreteiros e empreiteiras, de juízes corrompidos,
de arranjos, acertos e assim por
diante... Aliás, nós brasileiros sabemos disso como poucos!
"A Qualquer Preço" trata dessa
conversa, entre o direito e o justo...
Era uma vez um advogado que só
enxergava honorários, mas, progressivamente, vai tendo seu coração materialista amolecido pelo
drama de crianças envenenadas
pela água contaminada por uma
grande corporação.
Parece imbecil. E é. Poderia ser
pior? Sempre, com a graça de
Deus. Acontece que, independentemente de sua vocação para o melodrama, a indústria cinematográfica não pode mais dar-se ao luxo
de produzir apenas para os imbecis completos. O ensino médio
criou uma massa de covardes cínicos, também conhecidos como
"consumidores" ou "clientes", que
demandam de roteiristas e escritores condimentar o molho de suas
historinhas com doses estudadas
de relativo sarcasmo.
Aqui está o que torna o filme menos intragável... O que ele tem de
melhor está justamente onde a trama da justiça parece não funcionar, apesar do protestantismo. As
reflexões do advogado Sehliehtmann (John Travolta), bem como
as aulas de seu oponente de tribunal, o professor Facher (Robert
Duvall), deixam escapar o que o
filme "poderia ser". Aliás, o brilho
desses atores também prova a teoria de que qualquer panaca pode
dirigir um filme narrativo de consistência, desde que amparado
num elenco decente e num roteiro
minimamente articulado.
Mas o que "poderia ser" não existe para um filme acabado. Essa
mesma indústria cinematográfica,
que não pode ser mais tão idiota
(tarefa agora assumida pelas televisões Broadcasting), passa longe
de ser ousada.
No final, ainda que por caminhos
tortuosos, a justiça americana
triunfa galhardamente, pondo os
capitalistas inescrupulosos em seu
lugar (o de pagadores de indenização). O mundo volta à normalidade de seu massacre cotidiano.
Seria uma piada de bom gosto,
não houvesse quem levasse o absurdo à sério. Bem, pode até ser um
consolo que em algum lugar alguém acredite nesse tipo de coisa,
sei lá. Uma veleidade que, por aqui,
não possuímos mais.
Avaliação:
Filme: A Qualquer Preço
Produção: EUA, 1998
Direção: Steven Zaillian
Com: John Travolta, Robert Duvall
Quando: a partir de hoje nos cines Astor,
Eldorado 6 e circuito
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