São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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CINEMA - "MABOROSI"
Kore-eda consegue fazer a passagem da morte para a vida

WALTER SALLES
especial para a Folha

No início, havia a luz. E também a sombra. "Maborosi" é o momento de transição entre esses dois estados.
Um dia, o marido de Yumiko decide caminhar nos trilhos do trem. O gesto não tem lógica aparente. Não importa a locomotiva que vem em sentido contrário, porque ele está respondendo a algo maior do que ele, a um chamamento. Uma estranha luminosidade o impele a ir para frente. Essa irradiação luminosa tem um nome -Maborosi. Não há dramatização dessa tragédia. Apenas uma terrível sensação de ausência, um sentimento de falta que perpassa o filme com um todo. Inexoravelmente, como uma ferida que não cicatriza.
"Maborosi" é o primeiro filme do documentarista japonês Hirokazu Kore-eda. Com uma maturidade surpreendente para um jovem realizador, Kore-eda nos oferece um filme denso e fascinante.
Não é um exercício fácil para o espectador, porque o rigor e a depuração são levados ao extremo. A fotografia, belíssima, é toda feita com luz natural, e os quadros não têm movimento. Trata-se menos de homenagear Ozu, o grande mestre japonês da narrativa com a câmera fixa, colocada na altura do tatame, do que respeitar um corpo que deixou de pulsar.
Se há uma discrição meditativa e quase hipnótica no contar, há também uma paulatina aproximação de uma possível redenção.
Yumiko casa-se novamente. Tamio, o novo marido, não consegue apagar a memória de Ikuo -aquele que se foi, atraído pela luz de Maborosi. Uma procissão se corporifica no meio da neve e da bruma. Yumiko decide acompanhá-la. É como se, por um momento, não houvesse solução, e a personagem principal estivesse para sempre enredada na sua incapacidade de esquecer -ou de entender.
E então, acontece o delicado milagre que justifica todo o filme. A prova de que a beleza, como lembra o "Cahiers du Cinéma" a respeito de "Maborosi", não precisa ser obrigatoriamente convulsiva.
No cinema hollywoodiano, a passagem da vida para a morte é uma prática recorrente. Kore-eda consegue exatamente o movimento inverso, algo infinitamente mais complexo e comovente: a passagem da morte para a vida.
Como na tradição pictórica japonesa, nem tudo será mostrado, ou decantado para o espectador. Respeitando o inexplicável da vida, haverá sempre uma parte do quadro -e dos personagens- que permanecerá no lusco-fusco.
Mas este não é um exercício frio e agônico. Kore-eda nos emociona de forma inesperada, transcendendo a qualidade aparentemente crepuscular da obra.
"Maborosi - A Luz da Ilusão" é um filme raro. Por causa da narrativa baseada na dilatação do tempo, chegou ao público de poucos países. O Brasil é um deles, e o privilégio só foi possível graças à ação corajosa dos Filmes da Mostra.
Valeu a pena -as luzes e as sombras de "Maborosi" são inesquecíveis.


Walter Salles é cineasta, diretor de "Central do Brasil".

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