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CINEMA - "MABOROSI"
Kore-eda consegue fazer a passagem da morte para a vida
WALTER SALLES
especial para a Folha
No início, havia a luz. E também
a sombra. "Maborosi" é o momento de transição entre esses dois estados.
Um dia, o marido de Yumiko decide caminhar nos trilhos do trem.
O gesto não tem lógica aparente.
Não importa a locomotiva que
vem em sentido contrário, porque
ele está respondendo a algo maior
do que ele, a um chamamento.
Uma estranha luminosidade o impele a ir para frente. Essa irradiação luminosa tem um nome -Maborosi. Não há dramatização dessa
tragédia. Apenas uma terrível sensação de ausência, um sentimento
de falta que perpassa o filme com
um todo. Inexoravelmente, como
uma ferida que não cicatriza.
"Maborosi" é o primeiro filme do
documentarista japonês Hirokazu
Kore-eda. Com uma maturidade
surpreendente para um jovem realizador, Kore-eda nos oferece um
filme denso e fascinante.
Não é um exercício fácil para o
espectador, porque o rigor e a depuração são levados ao extremo. A
fotografia, belíssima, é toda feita
com luz natural, e os quadros não
têm movimento. Trata-se menos
de homenagear Ozu, o grande
mestre japonês da narrativa com a
câmera fixa, colocada na altura do
tatame, do que respeitar um corpo
que deixou de pulsar.
Se há uma discrição meditativa e
quase hipnótica no contar, há também uma paulatina aproximação
de uma possível redenção.
Yumiko casa-se novamente. Tamio, o novo marido, não consegue
apagar a memória de Ikuo -aquele que se foi, atraído pela luz de
Maborosi. Uma procissão se corporifica no meio da neve e da bruma. Yumiko decide acompanhá-la. É como se, por um momento,
não houvesse solução, e a personagem principal estivesse para sempre enredada na sua incapacidade
de esquecer -ou de entender.
E então, acontece o delicado milagre que justifica todo o filme. A
prova de que a beleza, como lembra o "Cahiers du Cinéma" a respeito de "Maborosi", não precisa
ser obrigatoriamente convulsiva.
No cinema hollywoodiano, a
passagem da vida para a morte é
uma prática recorrente. Kore-eda
consegue exatamente o movimento inverso, algo infinitamente mais
complexo e comovente: a passagem da morte para a vida.
Como na tradição pictórica japonesa, nem tudo será mostrado, ou
decantado para o espectador. Respeitando o inexplicável da vida,
haverá sempre uma parte do quadro -e dos personagens- que
permanecerá no lusco-fusco.
Mas este não é um exercício frio e
agônico. Kore-eda nos emociona
de forma inesperada, transcendendo a qualidade aparentemente
crepuscular da obra.
"Maborosi - A Luz da Ilusão" é
um filme raro. Por causa da narrativa baseada na dilatação do tempo, chegou ao público de poucos
países. O Brasil é um deles, e o privilégio só foi possível graças à ação
corajosa dos Filmes da Mostra.
Valeu a pena -as luzes e as sombras de "Maborosi" são inesquecíveis.
Walter Salles é cineasta, diretor de "Central do
Brasil".
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