São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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Um banho de sangue que nunca vem

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Há pelo menos duas maneiras de se filmar a violência em grande estilo: pela sua presença exacerbada ou pela ausência absoluta. Ao contrário de uma tendência recente do cinema japonês, em que a presença da violência é elevada à potência máxima, Hirokazu Kore-eda optou por escondê-la em seu primeiro longa-metragem, "Maborosi - A Luz da Ilusão" (1995), já exibido na Mostra, em São Paulo.
Tudo na contenção melancólica desse filme parece preparar o espectador para uma explosão de violência, que pode ocorrer, inesperadamente, a qualquer momento, mas na realidade nunca vem. É só uma tensão permanente que dá a entender que a morte está por trás de todas as coisas, rondando mesmo a paisagem mais bucólica ou a cena familiar aparentemente mais tranquila e feliz.
Uma mulher vive na mais completa felicidade com um operário, apesar de não terem dinheiro e de morarem num apartamento minúsculo num bairro popular de Osaka. Os dois se amam, têm um filho. Nada pode perturbar esse estado de equilíbrio e plenitude até a noite em que um policial bate à porta do apartamento para que a mulher venha reconhecer os objetos de um homem que se suicidou na linha do trem, seu marido.
Resignada, ela reconhece os objetos pessoais do marido (já que o corpo não mais existe, segundo o policial) e se casa depois de alguns anos com um outro homem que vive numa vila de pescadores nos confins do Japão, para onde ela se muda com o filho pequeno. Tudo parece correr na mais perfeita paz se não fosse, por isso mesmo, a impressão de que a morte pode voltar a irromper a qualquer momento.
Citando abertamente planos clássicos de Ozu, com a câmera que registra os personagens, os trens, as paisagens e o interior das casas de um ângulo baixo, à altura de quem está ajoelhado, Kore-eda toma o caminho de uma tradição japonesa em que a tese do "menos vale mais" é levada ao pé da letra.
Porque, na sua placidez, "Maborosi" é um filme sobre a violência. Não uma violência explícita (não se vê uma gota de sangue), mas a que está implícita no próprio fato de se estar vivo. Por trás da sua resignação, a mulher está no fundo assombrada e obcecada pela razão do suicídio inexplicável do marido. E, na sua contenção, acaba imantando tudo a sua volta com a iminência da morte, deixando o espectador sofrer o suspense provocado pela consciência da fragilidade do estado dos seres vivos, de que a vida está sempre por um fio.
Essa consciência dá à tranquilidade e à melancolia do filme uma tensão permanente, como se um banho de sangue pudesse explodir de uma hora para outra -o que obviamente não poderia acontecer no filme de um discípulo de Ozu.
Para aplacar o desespero da mulher diante da falta de razões para o suicídio do primeiro marido, o atual conta-lhe a história de "maborosi", uma "luz que acena", como uma pulsão de morte, um chamado que você atende por equívoco ou ilusão. E, como o filme que não mostra para fazer ver, ela entende por fim que a compreensão do que a cerca está no que não pode ser dito ou visto, além do alcance da representação.


Avaliação:


Filme: Maborosi - A Luz da Ilusão
Produção: Japão, 1995
Direção: Hirokazu Kore-eda
Com: Makiko Esumi, Takashi Naitoh
Quando: a partir de hoje, na Sala Cinemateca



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