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Um banho de sangue que nunca vem
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Há pelo menos duas maneiras de
se filmar a violência em grande estilo: pela sua presença exacerbada
ou pela ausência absoluta. Ao contrário de uma tendência recente do
cinema japonês, em que a presença
da violência é elevada à potência
máxima, Hirokazu Kore-eda optou por escondê-la em seu primeiro longa-metragem, "Maborosi - A
Luz da Ilusão" (1995), já exibido na
Mostra, em São Paulo.
Tudo na contenção melancólica
desse filme parece preparar o espectador para uma explosão de
violência, que pode ocorrer, inesperadamente, a qualquer momento, mas na realidade nunca vem. É
só uma tensão permanente que dá
a entender que a morte está por
trás de todas as coisas, rondando
mesmo a paisagem mais bucólica
ou a cena familiar aparentemente
mais tranquila e feliz.
Uma mulher vive na mais completa felicidade com um operário,
apesar de não terem dinheiro e de
morarem num apartamento minúsculo num bairro popular de
Osaka. Os dois se amam, têm um
filho. Nada pode perturbar esse estado de equilíbrio e plenitude até a
noite em que um policial bate à
porta do apartamento para que a
mulher venha reconhecer os objetos de um homem que se suicidou
na linha do trem, seu marido.
Resignada, ela reconhece os objetos pessoais do marido (já que o
corpo não mais existe, segundo o
policial) e se casa depois de alguns
anos com um outro homem que vive numa vila de pescadores nos
confins do Japão, para onde ela se
muda com o filho pequeno. Tudo
parece correr na mais perfeita paz
se não fosse, por isso mesmo, a impressão de que a morte pode voltar
a irromper a qualquer momento.
Citando abertamente planos
clássicos de Ozu, com a câmera
que registra os personagens, os
trens, as paisagens e o interior das
casas de um ângulo baixo, à altura
de quem está ajoelhado, Kore-eda
toma o caminho de uma tradição
japonesa em que a tese do "menos
vale mais" é levada ao pé da letra.
Porque, na sua placidez, "Maborosi" é um filme sobre a violência.
Não uma violência explícita (não
se vê uma gota de sangue), mas a
que está implícita no próprio fato
de se estar vivo. Por trás da sua resignação, a mulher está no fundo
assombrada e obcecada pela razão
do suicídio inexplicável do marido. E, na sua contenção, acaba
imantando tudo a sua volta com a
iminência da morte, deixando o
espectador sofrer o suspense provocado pela consciência da fragilidade do estado dos seres vivos, de
que a vida está sempre por um fio.
Essa consciência dá à tranquilidade e à melancolia do filme uma
tensão permanente, como se um
banho de sangue pudesse explodir
de uma hora para outra -o que
obviamente não poderia acontecer
no filme de um discípulo de Ozu.
Para aplacar o desespero da mulher diante da falta de razões para o
suicídio do primeiro marido, o
atual conta-lhe a história de "maborosi", uma "luz que acena", como uma pulsão de morte, um chamado que você atende por equívoco ou ilusão. E, como o filme que
não mostra para fazer ver, ela entende por fim que a compreensão
do que a cerca está no que não pode ser dito ou visto, além do alcance da representação.
Avaliação:
Filme: Maborosi - A Luz da Ilusão
Produção: Japão, 1995
Direção: Hirokazu Kore-eda
Com: Makiko Esumi, Takashi Naitoh
Quando: a partir de hoje, na Sala
Cinemateca
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