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CARLOS HEITOR CONY
"Recua, biltre, com esta mão imunda!"
Conforme esperava, recebi
novo sedex com outro fascículo
que me parece ser a continuação de um folhetim, "O Sedutor
Maldito", cujo início contei semana passada, na matéria que
tinha como título: "Não, Lourenço, sou inocente, juro-to!".
Infelizmente, não veio indicação de ser este o segundo, terceiro ou centésimo capítulo,
daí que deve haver alguns furos
na narrativa. Mas a história
em si é tão densa que parece
nada faltar -como nessas entrevistas com ministros na TV,
em que a gente ouve um pedaço, muda de canal, assiste a um
filme, a um jogo de futebol e
passa novamente pelo ministro, que continua falando. A
impressão é de que não perdemos nada.
Daí que, sendo o segundo ou
milésimo fascículo, nada se
perde da ação. Monteroxo surpreende Flora, sua noiva, leva-a a alcova, onde, além do leito,
há um armário. Nesse tipo de
literatura, o armário é indispensável. Dele sai um homem
que ali se escondera com intenções tão inconfessáveis que
nem mesmo ele confessa seu
verdadeiro nome.
Deixamos Monteroxo vestido
de pierrô, não roxo, mas branco, com pompons grená, ao pé
do adamascado leito de Flora,
a qual protestava inocência, ao
mesmo tempo em que se revelava uma ancestral de Jânio
Quadros na mania de colocar
os pronomes: "Não, Lourenço,
sou inocente, juro-to!". Nesta
justa hora, "ouviu-se um cavo
rumor no armário" e de dentro
dele saiu um camarada -fato
que deixou Monteroxo "cadavérico de raiva".
Esperava maiores detalhes no
próximo fascículo, mas o que
me chegou pelo correio faz uma
elipse maior do que a de Kubrick em "2001". Como se recorda, no filme de Kubrick, um
macaco joga o osso de outro
macaco ao ar e esse osso se
transforma numa cápsula espacial que se dirige às galáxias.
É uma baita elipse, de uns 400
mil anos.
No caso do meu folhetim, a
elipse deve ter passado por fatos bem interessantes ou pelo
menos inexplicáveis. Retomamos a ação com Monteroxo
vindo da igreja com Flora nos
braços, casados e felizes para
sempre. Flora está de véu e grinalda, de onde se conclui que
Monteroxo acreditou nos protestos de inocência da noiva.
Mas as forças do mal estão
desencadeadas -e, apesar de
as forças serem fortes e apesar
de estarem fortemente desencadeadas, cabem dentro do armário. (Eram sólidos os armário daquele tempo)
Estamos naquilo que o autor
chama de "prelúdios" da grande noite. O banquete contou
com as mais finas iguarias, os
vinhos mais capitosos. Quando
todos foram embora, os recém-casados olharam-se e chegaram à mesma constatação:
"- É hora, amor!"
E, sendo a hora, subiram os
dois. Mas alguém havia subido
antes. Sara, a diabólica irmã
de Flora, que amava secretamente Monteroxo. Na melhor
tradição das alcovas, escondeu-se dentro do armário. Que
deve ser o mesmo do fascículo
anterior.
Flora deitou-se em seu leito
também adamascado, pois todos os leitos desses romances
são adamascados. Espera ela
que Monteroxo se apronte para
"a cutilada final". Enquanto
espera, fuma "tabacos turcos
em piteira do mais fino lavor".
Satisfeito com essa frase, o autor julga-se no dever de acrescentar: "É uma alcova de luxo
asiático!".
Apesar do luxo asiático,
apronta-se uma bandalheira
bem ocidental naquela alcova.
Monteroxo aproxima-se do leito. Flora empalidece vendo os
lábios crispados do marido, o
olhar de fogo, "a adaga pronta
para o golpe fatal". Quando os
braços se atiram, "loucos" para
o enlace definitivo, o armário
rumoreja novamente.
"- Ouço vozes!", exclama
Flora estarrecida.
Monteroxo vai ver o que é,
mas, quando se dirige para o
armário, surge Sara repentinamente:
"- Não, Lourenço, a tua suspeita é vil!"
Monteroxo vai dizer que não
estava suspeitando de nada,
mas a prudência o aconselha a
suspeitar de alguma coisa:
"- Exijo explicações!"
Sara desce com Monteroxo
para as explicações numa sala
ao lado. Em meio às explicações, ele ouve gemidos suspeitos vindos de sua alcova. Corre
para lá e vê um homem acariciando "a parte mais recôndita
de sua mulher".
"- Recua, biltre, com esta
mão imunda!"
O biltre vai recuar com sua
mão imunda, mas Flora dá um
grito e desmaia. Sara surge e,
vendo o bode armado, também
desmaia. Monteroxo não desmaia, mas fica sem saber se
acode Sara no chão ou sua mulher na cama. Termina optando por Sara e a ergue nos braços. Só então repara que o intruso é um mascarado.
"- Quem sois?"
"- Um cavaleiro da Ordem
Equestre!"
Ambos são cavaleiros da Ordem Equestre -acrescenta o
autor- e equestramente resolvem se unir na desgraça e socorrer as mulheres desfalecidas. Trocam-se olhares furibundos.
"- Espero uma solução de
cavalheiros!"
"- Um aperto de mão?"
"- Não. Um duelo!"
"- De Floretes?"
"- De pistolas!"
Como se nota, Monteroxo insiste em engrossar. O autor promete fortes e cruentas emoções
no próximo fascículo. Esperemos.
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