São Paulo, Sexta-feira, 16 de Abril de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
"Recua, biltre, com esta mão imunda!"

Conforme esperava, recebi novo sedex com outro fascículo que me parece ser a continuação de um folhetim, "O Sedutor Maldito", cujo início contei semana passada, na matéria que tinha como título: "Não, Lourenço, sou inocente, juro-to!".
Infelizmente, não veio indicação de ser este o segundo, terceiro ou centésimo capítulo, daí que deve haver alguns furos na narrativa. Mas a história em si é tão densa que parece nada faltar -como nessas entrevistas com ministros na TV, em que a gente ouve um pedaço, muda de canal, assiste a um filme, a um jogo de futebol e passa novamente pelo ministro, que continua falando. A impressão é de que não perdemos nada.
Daí que, sendo o segundo ou milésimo fascículo, nada se perde da ação. Monteroxo surpreende Flora, sua noiva, leva-a a alcova, onde, além do leito, há um armário. Nesse tipo de literatura, o armário é indispensável. Dele sai um homem que ali se escondera com intenções tão inconfessáveis que nem mesmo ele confessa seu verdadeiro nome.
Deixamos Monteroxo vestido de pierrô, não roxo, mas branco, com pompons grená, ao pé do adamascado leito de Flora, a qual protestava inocência, ao mesmo tempo em que se revelava uma ancestral de Jânio Quadros na mania de colocar os pronomes: "Não, Lourenço, sou inocente, juro-to!". Nesta justa hora, "ouviu-se um cavo rumor no armário" e de dentro dele saiu um camarada -fato que deixou Monteroxo "cadavérico de raiva".
Esperava maiores detalhes no próximo fascículo, mas o que me chegou pelo correio faz uma elipse maior do que a de Kubrick em "2001". Como se recorda, no filme de Kubrick, um macaco joga o osso de outro macaco ao ar e esse osso se transforma numa cápsula espacial que se dirige às galáxias. É uma baita elipse, de uns 400 mil anos.
No caso do meu folhetim, a elipse deve ter passado por fatos bem interessantes ou pelo menos inexplicáveis. Retomamos a ação com Monteroxo vindo da igreja com Flora nos braços, casados e felizes para sempre. Flora está de véu e grinalda, de onde se conclui que Monteroxo acreditou nos protestos de inocência da noiva.
Mas as forças do mal estão desencadeadas -e, apesar de as forças serem fortes e apesar de estarem fortemente desencadeadas, cabem dentro do armário. (Eram sólidos os armário daquele tempo)
Estamos naquilo que o autor chama de "prelúdios" da grande noite. O banquete contou com as mais finas iguarias, os vinhos mais capitosos. Quando todos foram embora, os recém-casados olharam-se e chegaram à mesma constatação:
"- É hora, amor!"
E, sendo a hora, subiram os dois. Mas alguém havia subido antes. Sara, a diabólica irmã de Flora, que amava secretamente Monteroxo. Na melhor tradição das alcovas, escondeu-se dentro do armário. Que deve ser o mesmo do fascículo anterior.
Flora deitou-se em seu leito também adamascado, pois todos os leitos desses romances são adamascados. Espera ela que Monteroxo se apronte para "a cutilada final". Enquanto espera, fuma "tabacos turcos em piteira do mais fino lavor". Satisfeito com essa frase, o autor julga-se no dever de acrescentar: "É uma alcova de luxo asiático!".
Apesar do luxo asiático, apronta-se uma bandalheira bem ocidental naquela alcova. Monteroxo aproxima-se do leito. Flora empalidece vendo os lábios crispados do marido, o olhar de fogo, "a adaga pronta para o golpe fatal". Quando os braços se atiram, "loucos" para o enlace definitivo, o armário rumoreja novamente.
"- Ouço vozes!", exclama Flora estarrecida.
Monteroxo vai ver o que é, mas, quando se dirige para o armário, surge Sara repentinamente:
"- Não, Lourenço, a tua suspeita é vil!"
Monteroxo vai dizer que não estava suspeitando de nada, mas a prudência o aconselha a suspeitar de alguma coisa:
"- Exijo explicações!"
Sara desce com Monteroxo para as explicações numa sala ao lado. Em meio às explicações, ele ouve gemidos suspeitos vindos de sua alcova. Corre para lá e vê um homem acariciando "a parte mais recôndita de sua mulher".
"- Recua, biltre, com esta mão imunda!"
O biltre vai recuar com sua mão imunda, mas Flora dá um grito e desmaia. Sara surge e, vendo o bode armado, também desmaia. Monteroxo não desmaia, mas fica sem saber se acode Sara no chão ou sua mulher na cama. Termina optando por Sara e a ergue nos braços. Só então repara que o intruso é um mascarado.
"- Quem sois?"
"- Um cavaleiro da Ordem Equestre!"
Ambos são cavaleiros da Ordem Equestre -acrescenta o autor- e equestramente resolvem se unir na desgraça e socorrer as mulheres desfalecidas. Trocam-se olhares furibundos.
"- Espero uma solução de cavalheiros!"
"- Um aperto de mão?"
"- Não. Um duelo!"
"- De Floretes?"
"- De pistolas!"
Como se nota, Monteroxo insiste em engrossar. O autor promete fortes e cruentas emoções no próximo fascículo. Esperemos.


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