São Paulo, terça, 16 de junho de 1998

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"Finnegans Wake" é livro sobre a noite

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Menos de um ano depois da publicação de "Ulisses" (1922), Joyce já estava trabalhando em seu novo livro, "Finnegans Wake" (1939). "Ulisses", cuja narrativa limita-se a um único dia em Dublin, fora um "livro diurno"; com "Finnegans Wake", ele se propunha agora a escrever "um livro sobre a noite".
Muito de sua renomada técnica verbal tem origem aí: o trocadilho e as palavras-valise (palavras compostas, onde se sobrepõem vários termos e até várias línguas) são um equivalente linguístico de uma prosa do inconsciente.
Sem uma narrativa clara, mas pondo em jogo centenas de histórias e milhares de personagens, "Finnegans Wake" é a grande comédia do século. Desde cada palavra isolada até as frases, sentenças, parágrafos, episódios, capítulos e partes, a ordem das coisas sofre aqui os destinos contraditórios da fragmentação e da multiplicação.
Não por acaso, Lacan era grande leitor de Joyce; não por acaso, Jacques Derrida também dedicou um longo ensaio a "Finnegans Wake" -dois nomes apenas de uma extensa linhagem de comentadores do texto.
Entre nós, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos foram os pioneiros desbravadores do "Work in Progress" (como era conhecido "Finnegans Wake" desde 1923 até a data de sua publicação).
A expressão "Finnegans Wake" alude a uma balada, sobre um operário que cai da escada bêbado, morre e renasce depois, com uma gosta de uísque, para vir dançar no próprio velório.
A história da queda e ressurreição de Finnegan serve de modelo para a história (nunca bem definida) da queda moral e social de HCE, o dono de um pub em Dublin, depois de um encontro sexual num parque da cidade.
Essa história reaparece, de uma forma ou de outra, em todas as páginas; mas sempre velada ou transformada, como cabe a um livro de sonhos.
"Mamafesta" ("Mama" + "festa" + "manifesto") é o nome consagrado pela crítica para o capítulo cinco. Escrito em tom de relatório policial ou acadêmico, está centrado sobre a descoberta de uma carta, escrita em defesa de HCE por sua mulher, Anna Livia Plurabella, que aparece aqui na forma de uma galinha, escarafunchando um monte de lixo.
A galinha Biddy Doran traz à mente outra canção: a "Balada do Asno de Doran", equivalente feminino da balada-título do livro. Foi com esse texto que Joyce iniciou a redação de "Finnegans Wake", sem saber exatamente, a princípio, o que estava fazendo, mas decidido a se aventurar na expansão infinita dessas "mil e uma auréolas remoinhas", ou "ilegíveis plumovôos etéreos".
O texto abaixo reúne fragmentos de uma tradução inédita da "Mamafesta", acompanhada de comentários e notas, realizada há dez anos sob orientação da professora Cheryl Herr, na Universidade de Iowa (EUA).
Traduzir "Finnegans Wake" nunca será mais do que uma recriação aproximativa do texto original. Mas também não pode ser menos. O próprio Joyce não fez outra coisa, quando traduziu um trecho do livro para o italiano e o francês. O tradutor tem naturalmente menos liberdade do que o autor para alterar forma e sentido.
De qualquer modo, acaba entrando, à sua maneira, para dentro do livro. A leitura de Joyce não acaba nunca. Nem a tradução, outra forma de work perpetuamente in progress.


Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na PUC-SP, autor de "Ironias da Modernidade" (Ática) e organizador de "Riverrun - Ensaios sobre James Joyce" (Imago), entre outros



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