São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

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LITERATURA

Cinebiografias destrincham método do escritor norte-americano na criação do livro-reportagem "A Sangue Frio"

Filmes examinam segredos de Capote

DAVID CARR
DO "NEW YORK TIMES"

Truman Capote ficaria satisfeito se soubesse que haverá não um, mas dois filmes celebrando sua vida, neste ano e no ano que vem. Não só "Capote" e "Have You Heard?" giram em torno de seu assunto favorito -Truman Capote- como a convergência e a promessa de conflito entre eles prometem uma camada adicional de excitação pela qual ele alegremente amarraria um guardanapo em torno do pescoço.
A fama e todos os seus descontentamentos eram obsessões persistentes para Capote, o que pode explicar o motivo de ele parecer disposto a fazer quase qualquer coisa para obtê-los. Enquanto escrevia o romance-reportagem "A Sangue Frio", obra-prima que serve de base a ambos os filmes, Capote contou certas mentiras a fim de revelar certas verdades. E com isso tornou-se um verdadeiro exemplo da maneira pela qual a verdade jornalística é obtida.
Nos cinco anos em que Capote trabalhou no projeto, que narra em detalhes o assassinato de quatro membros de uma família de fazendeiros em Holcomb, Kansas, por uma dupla de desocupados, ele desenvolveu um vínculo emocional com ambos os assassinos. Mas o relacionamento não impediu que o escritor torcesse para que ambos fossem condenados à morte, sem o que ele não teria um final para o seu trabalho mais importante.
"A Sangue Frio", publicado em 1965, foi registrado e narrado de uma maneira que não revela nenhum remorso. Ele conquistou a confiança dos dois assassinos, convenceu-os a contar suas histórias e depois os vendeu.
Aparentemente a ressonância e a atualidade da história foram suficientes para atrair dois diferentes cineastas. "Capote" se baseia na biografia homônima, por Gerald Clarke, publicada em 1990, enquanto "Have You Heard?" (você sabia?) se baseia nas entrevistas recolhidas por George Plimpton em seu livro "Truman Capote: In Which Various Friends, Enemies, Acquaintances and Detractors Recall his Turbulent Career" (Truman Capote: no qual diversos amigos, inimigos, conhecidos e detratores relembram sua turbulenta carreira), publicado em 1997. Mas as diferenças básicas se encerram aí. Ambos os filmes tomam por tema a investigação jornalística e o período de redação de "A Sangue Frio" e têm por principal preocupação a motivação e a metodologia de Capote para relatar aquela história sombria.
"Capote", que está praticamente pronto, deve ser lançado em 30 de setembro (o aniversário do escritor), enquanto "Have You Heard?", estrelado por Sandra Bullock, Gwyneth Paltrow e Sigourney Weaver, entre outros, ainda está sendo editado e teve sua estréia adiada para o final de 2006 pela distribuidora, a Warner Independent Pictures.
Ambos os filmes começam com Capote, um romancista gay de Nova York, implausivelmente chegando à região rural do Kansas para começar a trabalhar na cobertura do caso, e o vemos dando início à sua sedução dos acusados. Ambos retratam-no como um narrador talentoso, mas cheio de veneno. É perfeitamente possível alegar que não existiriam livros como "Armies of the Night", de Norman Mailer, ou a série de relatos de história contemporânea em que a presença do narrador é discretíssima escritos por Bob Woodward se não houvesse "A Sangue Frio".
Quase todo mundo que digita um texto hoje em dia deve alguma coisa a Capote. Ele transformou o trabalho braçal do jornalismo em algo muito mais literário.
"Não houve ninguém na vida dos Estados Unidos que se parecesse nem remotamente com Truman Capote", disse Norman Mailer certa vez.
Desde o começo, Capote sofria de enorme carência em qualquer ambiente e tinha o desejo de ser validado por qualquer um e quase todo mundo. A maior parte dos jornalistas chega à profissão com inclinação semelhante: por que correr o risco de cometer erros em público se o reconhecimento não existisse como recompensa? Mas a profissão requer cooperação. O tema do trabalho precisa se envolver na empreitada, mesmo que isso raramente sirva ao seu melhor interesse. Capote demonstrou vividamente que o que é bom para o escritor é vendido ao tema do trabalho como se fosse igualmente bom para ele.
Ao fazê-lo, ele deu início a um novo gênero de livro, o "jornalismo literário", cuja base é a intimidade. O jornalista se posiciona diante do tema, todo ouvidos, sempre simpático, determinado a ajudar a pessoa a contar "sua" história. Mas nunca é a história da pessoa que é ouvida; o que resulta do processo é a história que o jornalista escolhe contar.
"A fim de contar a história que ele contou, é necessária uma pessoa ardilosa, de pensamento rápido, que não esteja acima de manipular os sonhos e esperanças de outros", disse Douglas McGrath, diretor de "Have You Heard?"
O público desconfia da imprensa há muito tempo. São as pessoas que têm de suportar o jornalismo, em todas as suas manifestações sagazes e grosseiras.
Ainda que a produção jornalística de Capote tenha sido pequena, ele enfrentou outros problemas, entre os quais uma acusação de Marlon Brando de que havia usado uma entrevista informal concedida no Japão e aproveitado os dados para escrever um perfil pouco lisonjeiro do ator.
O sucesso de Capote teve um preço bastante significativo. O romance que planejou para seguir "A Sangue Frio", "Answered Prayers" [preces atendidas], se tornou um obstáculo intransponível e ele jamais conseguiu conclui-lo, em parte porque previu que conseguir o que se deseja pode causar paralisia.


Tradução de Paulo Migliacci

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