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ENSAIOS/"LOVE, POVERTY, AND WAR: JOURNEYS AND ESSAYS"
Amor, pobreza e guerra em Hitchens
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tempos houve em que o jornalismo tocava o dedo da literatura. Fatos? Sim, claro: mas o
jornalismo não era apenas acumulação maquinal de fatos. Era,
como devia ser, gesto criativo e
pessoal, que transcendia os fatos.
Nos Estados Unidos, e no século
20, encontramos a figura tutelar
de Henry Louis Mencken, H.L.
Mencken para os íntimos, que dominou a primeira metade da centúria. E encontramos Gore Vidal,
herdeiro de Mencken, que dominou a segunda. Quem, hoje, ocupa a cadeira dos gigantes com
igual legitimidade?
A resposta foi dada pelo próprio
Vidal, uns anos atrás: Christopher
Hitchens, disse ele, com clássica
soberba. Isto foi antes do 11 de Setembro e Vidal rapidamente se
arrependeu: com o 11 de Setembro, Hitchens horrorizou uma
parte crescente da esquerda americana ao não culpar Washington
pelos ataques terroristas. Nada
explica e nada justifica o horror de
uma manhã de setembro. Foi o
adeus a Sontag, o adeus a
Chomsky. O adeus a Vidal?
Dificilmente. Leio "Love, Poverty, and War: Journeys and Essays" (amor, pobreza e guerra:
viagens e ensaios) e encontro Vidal a pairar sobre estas páginas. O
mesmo tom blasé. O mesmo radicalismo chic. A mesma hostilidade às religiões tradicionais. E, naturalmente, um livro dividido em
três partes, como no clássico de
Vidal, "United States: Essays
1952-1992" (Estados Unidos: ensaios 1952-1992), monumento literário que, sem exagero, devia
ser leitura obrigatória para qualquer candidato a jornalista.
De que nos fala o livro de Hitchens? Como o título indica, de
amor, pobreza e guerra. Ou, se
preferirem, de livros, polêmicas e
do terrorismo pós-11 de Setembro.
Os livros revelam um bom gosto irrepreensível. Difícil não concordar com Hitchens, que elogia
Graham Greene, Amis (pai),
Byron e Evelyn Waugh, reacionário e modernista, combinação
que parece espantar o próprio
Hitchens. Desnecessário. O reacionarismo de Evelyn é chave para entender a modernidade da sua
ficção. Como encontrar ordem
num mundo moderno dramaticamente em desordem, eis a pergunta central da obra de Waugh.
Sobretudo do Waugh mais tardio.
Mas tem mais: Hitchens se entrega a curiosidades notáveis, e o
ensaio inaugural do livro, sobre o
mito Churchill, exige leitura e releitura. Concordo com a tese de
que é possível encontrar duas fases distintas na biografia do velho
Winston: uma primeira parte de
fracassos, uma segunda de glórias, marcada pela coragem na
guerra. E vocês sabiam que muitas das transmissões radiofônicas
de Churchill não foram feitas pelo
próprio -mas por um ator da
BBC?
Eu confesso que não. Como não
sabia dos reais motivos que levaram James Joyce a escolher o 16 de
junho -o célebre Bloomsday-
para dia da sua odisséia. Esqueçam os teóricos, mergulhem na
biografia: no dia 16 de junho, Joyce caminhou com Nora Barnacle,
sua futura esposa, em direção às
docas de Dublin. Foi aí que Dora
-ah, como dizer?- executou
um trabalho manual no escritor.
Foi a primeira epifania.
As duas últimas partes são polêmica pura e dura. Hitchens desce
o sarrafo sobre John F. Kennedy e
suas fraquezas políticas, morais,
físicas e até mentais. Aplica igual
tratamento a Michael Moore e a
"Fahrenheit 11 de Setembro". E
transforma Madre Teresa de Calcutá em figura diabólica, amiga de
ditadores e de uma hipocrisia ascética que ajudou a construir sua
fama internacional. Para onde foram os milhões de dólares que
Madre Teresa recebeu para melhorar as condições de vida dos
seus doentes? A acusação não é
nova: em publicação anterior,
Hitchens repetira o assalto. O livro, com o título mais subversivo
do jornalismo moderno, se chama "The Missionary Position:
Mother Teresa in Theory and
Practice" (a função do missionário: Madre Teresa na teoria e na
prática).
Eu termino com escolha pessoal. São 47 ensaios, prodigiosamente pensados e escritos. Mas,
se tivesse de eleger um só, ficaria
com "Scenes of an Execution"
(cenas de uma execução), relato
de uma execução prisional no Texas. Somos a única espécie que
tem consciência da sua mortalidade, afirma Hitchens. Mas desconhecemos a hora do nosso fim.
Por isso a pena de morte nos desumaniza: porque destrói esse paradoxo providencial que nos protege da angústia intolerável.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online.
E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
Love, Poverty, and War: Journeys and Essays
Autor: Christopher Hitchens
Editora: Nation Books (em inglês)
Quanto: US$ 16,95 (R$ 40), 432 págs.
Onde encontrar: www.amazon.com
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