São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENSAIOS/"LOVE, POVERTY, AND WAR: JOURNEYS AND ESSAYS"

Amor, pobreza e guerra em Hitchens

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tempos houve em que o jornalismo tocava o dedo da literatura. Fatos? Sim, claro: mas o jornalismo não era apenas acumulação maquinal de fatos. Era, como devia ser, gesto criativo e pessoal, que transcendia os fatos. Nos Estados Unidos, e no século 20, encontramos a figura tutelar de Henry Louis Mencken, H.L. Mencken para os íntimos, que dominou a primeira metade da centúria. E encontramos Gore Vidal, herdeiro de Mencken, que dominou a segunda. Quem, hoje, ocupa a cadeira dos gigantes com igual legitimidade?
A resposta foi dada pelo próprio Vidal, uns anos atrás: Christopher Hitchens, disse ele, com clássica soberba. Isto foi antes do 11 de Setembro e Vidal rapidamente se arrependeu: com o 11 de Setembro, Hitchens horrorizou uma parte crescente da esquerda americana ao não culpar Washington pelos ataques terroristas. Nada explica e nada justifica o horror de uma manhã de setembro. Foi o adeus a Sontag, o adeus a Chomsky. O adeus a Vidal?
Dificilmente. Leio "Love, Poverty, and War: Journeys and Essays" (amor, pobreza e guerra: viagens e ensaios) e encontro Vidal a pairar sobre estas páginas. O mesmo tom blasé. O mesmo radicalismo chic. A mesma hostilidade às religiões tradicionais. E, naturalmente, um livro dividido em três partes, como no clássico de Vidal, "United States: Essays 1952-1992" (Estados Unidos: ensaios 1952-1992), monumento literário que, sem exagero, devia ser leitura obrigatória para qualquer candidato a jornalista.
De que nos fala o livro de Hitchens? Como o título indica, de amor, pobreza e guerra. Ou, se preferirem, de livros, polêmicas e do terrorismo pós-11 de Setembro.
Os livros revelam um bom gosto irrepreensível. Difícil não concordar com Hitchens, que elogia Graham Greene, Amis (pai), Byron e Evelyn Waugh, reacionário e modernista, combinação que parece espantar o próprio Hitchens. Desnecessário. O reacionarismo de Evelyn é chave para entender a modernidade da sua ficção. Como encontrar ordem num mundo moderno dramaticamente em desordem, eis a pergunta central da obra de Waugh. Sobretudo do Waugh mais tardio.
Mas tem mais: Hitchens se entrega a curiosidades notáveis, e o ensaio inaugural do livro, sobre o mito Churchill, exige leitura e releitura. Concordo com a tese de que é possível encontrar duas fases distintas na biografia do velho Winston: uma primeira parte de fracassos, uma segunda de glórias, marcada pela coragem na guerra. E vocês sabiam que muitas das transmissões radiofônicas de Churchill não foram feitas pelo próprio -mas por um ator da BBC?
Eu confesso que não. Como não sabia dos reais motivos que levaram James Joyce a escolher o 16 de junho -o célebre Bloomsday- para dia da sua odisséia. Esqueçam os teóricos, mergulhem na biografia: no dia 16 de junho, Joyce caminhou com Nora Barnacle, sua futura esposa, em direção às docas de Dublin. Foi aí que Dora -ah, como dizer?- executou um trabalho manual no escritor. Foi a primeira epifania.
As duas últimas partes são polêmica pura e dura. Hitchens desce o sarrafo sobre John F. Kennedy e suas fraquezas políticas, morais, físicas e até mentais. Aplica igual tratamento a Michael Moore e a "Fahrenheit 11 de Setembro". E transforma Madre Teresa de Calcutá em figura diabólica, amiga de ditadores e de uma hipocrisia ascética que ajudou a construir sua fama internacional. Para onde foram os milhões de dólares que Madre Teresa recebeu para melhorar as condições de vida dos seus doentes? A acusação não é nova: em publicação anterior, Hitchens repetira o assalto. O livro, com o título mais subversivo do jornalismo moderno, se chama "The Missionary Position: Mother Teresa in Theory and Practice" (a função do missionário: Madre Teresa na teoria e na prática).
Eu termino com escolha pessoal. São 47 ensaios, prodigiosamente pensados e escritos. Mas, se tivesse de eleger um só, ficaria com "Scenes of an Execution" (cenas de uma execução), relato de uma execução prisional no Texas. Somos a única espécie que tem consciência da sua mortalidade, afirma Hitchens. Mas desconhecemos a hora do nosso fim. Por isso a pena de morte nos desumaniza: porque destrói esse paradoxo providencial que nos protege da angústia intolerável.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Love, Poverty, and War: Journeys and Essays
Autor: Christopher Hitchens
Editora: Nation Books (em inglês)
Quanto: US$ 16,95 (R$ 40), 432 págs.
Onde encontrar: www.amazon.com


Texto Anterior: Literatura: Filmes examinam segredos de Capote
Próximo Texto: Livros - Poesia: Gonçalo M. Tavares apresenta seu monólogo do debochado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.