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DISCO CRÍTICA
Legião Urbana abre temporada de necrofilia
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
É hora de enfrentar. "Uma Outra Estação", primeiro disco póstumo da banda Legião Urbana, de
Renato Russo (1960-1996), é um
indício a mais de que, em arte, a
morte é bem menos grave que a
necrofilia.
Não deve ser culpa de ninguém.
Fãs, remanescentes da banda e,
er..., gravadora, mais que atraídos
pelos odores da morte, devem se
encontrar tristes, saudosos, desconsolados ainda.
Torna-se inevitável a chegada ao
mercado de produtos desse tipo
-o próprio material promocional
já avisa, de soslaio, que devem vir
mais discos ao vivo no futuro.
Os colegas -Dado Villa-Lobos,
Marcelo Bonfá e Renato Rocha
(este novamente participando da
banda)- se previnem em frase
que abre o encarte: "Ouça este disco da primeira à última faixa. Esta
é a história de nossas vidas".
Torna-se constrangedor contrariá-los, mas isso não é verdade.
"Uma Outra Estação" já não é
mais história, é pós-história, se
não mera necrofilia.
Pois veja: com raras exceções
-talvez caiba aí apenas "Clarisse", a propalada canção "barra-pesada" da fase final de Russo,
10min32 da vida bandida de uma
menina de 14 anos-, o CD expõe
o artista (nessa fase convertido em
intérprete por excelência) depauperado, de voz hipnotizada, sonâmbula de morte.
A banda trabalha a sonoridade
das canções, tentando flechar deficiências e transformar em
rock'n'roll o fio de voz que restava
ao outrora trovejante cantor.
Mas os versos de "As Flores do
Mal" e "Uma Outra Estação",
por exemplo, são cuspidos, expelidos de forma às vezes indecifrável.
Ainda assim, o disco guarda
muito do potencial épico que fez a
delícia da relação da banda brasiliense com o Brasil.
Começa, em "Riding Song",
com um fundo instrumental bem
elaborado, tipo rock de viagem,
entremeado de gravações feitas em
86 (à época de "Dois"), em que os
membros da banda se apresentam.
"Eu sou o Renato Russo, eu escrevo as letras e eu canto, (...) eu
tenho 23 anos", diz o líder, para
que depois um coro podreira entoe: "Eu já sei o que eu vou ser/ Ser
quando eu crescer". Os fãs devem
se derreter, mas tudo parece mórbido por demais, tanto quanto sem
razão de ser.
O que sobra do banquete pós-fúnebre? O testamento dos últimos
escritos de Renato -que, saturados de desespero (casos, por
exemplo, de "Sagrado Coração"
-que Renato não chegou a gravar- e "Clarisse") correm para
longe da velha simbiose messiânica/ adolescente com o público.
Pouco antes de morrer, Renato
tornava-se mais hermético que
nunca. Aqui está a faixa "A Tempestade", que nomeou o último
disco de Renato em vida -"A
Tempestade ou O Livro dos Dias".
A referência nominal ao texto de
William Shakespeare, também um
canto de cisne, é inquestionável.
Vivo ainda, Renato estava já disposto a alertar o país da proximidade de sua morte.
Aqui está, também, "As Flores
do Mal", canção homônima à
obra de Charles Baudelaire e tão
sedenta de morbidez quanto. Até
música erudita aqui se encontra,
na instrumental "Schubert Länder", de Franz Schubert.
A conclusão é clara: em vida, dificilmente tais humores encontrariam eco na legião adolescente de
fãs. O encanto estava quebrado.
Por isso, Renato dispensou do
CD -por ora, que morto ele já não
poderia determinar o destino das
mesmas- canções como "Clarisse" e "La Maison Dieu".
Morto Renato, um batalhão ávido -fãs, gravadora, colegas de
banda, mídia- cai por cima do
que era para ser pura e simplesmente matéria anticomercial. E a
lógica de mercado, braços dados
com a necrofilia, é quem vai novamente ao trono.
Disco: Uma Outra Estação
Banda: Legião Urbana
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 18, em média
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