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O LIVRO
Para Schnitzler, sexo
é ponto de partida
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
"Traumnovelle" (1926), que se poderia mais ou menos traduzir como
"Novela Onírica", é uma das últimas
obras do escritor vienense Arthur
Schnitzler (1862-1931).
Dramaturgo, contista, romancista e,
em menor escala, poeta e ensaísta, ele
foi um expoente da plêiade de talentos (Musil, Kraus, Rilke, Kafka, Klimt,
Mahler etc.) que, no Império Austro-Húngaro da virada do século, contribuiu decisivamente para a criação da
cultura moderna.
Médico de formação e também filho
de um dos mais renomados médicos
da capital austríaca, ele não só se dedicou a dissecar o que um conterrâneo e
contemporâneo seu chamaria de o
"mal-estar na cultura" (pelo menos a
de seu tempo e lugar), como, embora
sem pretensões explicitamente científicas, acabou por fazê-lo com mais
profundidade e, sem se arrogar qualquer acesso privilegiado aos sub-ou-inconscientes privados e coletivos,
conseguiu dar forma eficaz àquilo
que, se bem que sabido por todos, as
convenções culturais, sociais e morais
impediam de ser literariamente articulado.
A discrepância entre o que as personagens pensam e fazem, por exemplo,
a gentileza exterior contrastada com
um mal-disfarçado e selvagem anti-semitismo íntimo no caso dos cristãos, ou a afetação de segurança e
tranquilidade contraposta a temores
viscerais (e prescientes) no caso dos
judeus, é um tópico que Schnitzler
não se cansa de entremostrar.
Obviamente, porém, sua atenção
concentra-se sobretudo na esfera da
vida onde o público e o privado confluem, ou melhor, colidem: o sexo.
Por isso, à primeira vista, suas tramas
remetem aos relatos libertinos do século 18, algo que, às vezes (quando
Casanova se torna seu herói ou anti-herói), fazem propositadamente. Mas
o vienense não é Sade e isso fica bem
claro em "Traumnovelle".
Fridolin é um médico de trinta e
poucos anos, casado com Albertina e
pai de uma menina. Certo dia, meio
para provocarem um ao outro, marido e mulher trocam confidências
acerca de pequenos flertes nos quais
haviam condescendido durante um
baile de máscaras da noite precedente.
A conversa se desdobra rumo a episódios mais graves ocorridos nas férias anteriores. Com a crise matrimonial, antes latente, agora deflagrada
no seu âmago, o protagonista (sob cujo ponto de vista é narrada a história)
envolve-se em duas noites e um dia de
situações estranhas que lhe revelam o
submundo orgiástico, talvez assassino, seguramente sifilítico e venal da
alta e demais sociedades.
Enquanto os ambientes e situações
pelos quais Fridolin transita (ou se
deixa levar) são, nas suas palavras, espectrais, Albertina lhe conta, no entretempo, um sonho adúltero e homicida que tampouco é menos sórdido.
Ao fim e ao cabo, a irrealidade do que
um havia experimentado e a intensidade do que a outra sonhara harmonizam-se, de maneira rara em Schnitzler, num desenlace feliz cuja provisoriedade, nem por isso, deixa de ser enfatizada.
Seria, portanto, redutor caracterizar
de erótica esta narrativa do vienense.
O sexo é para ele, em toda sua obra,
um ponto de partida, ou melhor, o
ponto de apoio ideal para uma visão
desencantada segundo a qual a essência das relações humanas é não tanto
o confronto quanto o desencontro e
uma perpétua irresolução.
Livro: Dream Story (em inglês)
Autor: Arthur Schnitzler
Editoras: Penguin Books (Inglaterra) e
Sun&Moon Press (EUA)
Livro: Relato Soñado (em espanhol)
Editora: Sirmio Quaderns Crema (Barcelona)
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