São Paulo, Sexta-feira, 16 de Julho de 1999
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O LIVRO
Para Schnitzler, sexo é ponto de partida

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

"Traumnovelle" (1926), que se poderia mais ou menos traduzir como "Novela Onírica", é uma das últimas obras do escritor vienense Arthur Schnitzler (1862-1931).
Dramaturgo, contista, romancista e, em menor escala, poeta e ensaísta, ele foi um expoente da plêiade de talentos (Musil, Kraus, Rilke, Kafka, Klimt, Mahler etc.) que, no Império Austro-Húngaro da virada do século, contribuiu decisivamente para a criação da cultura moderna.
Médico de formação e também filho de um dos mais renomados médicos da capital austríaca, ele não só se dedicou a dissecar o que um conterrâneo e contemporâneo seu chamaria de o "mal-estar na cultura" (pelo menos a de seu tempo e lugar), como, embora sem pretensões explicitamente científicas, acabou por fazê-lo com mais profundidade e, sem se arrogar qualquer acesso privilegiado aos sub-ou-inconscientes privados e coletivos, conseguiu dar forma eficaz àquilo que, se bem que sabido por todos, as convenções culturais, sociais e morais impediam de ser literariamente articulado.
A discrepância entre o que as personagens pensam e fazem, por exemplo, a gentileza exterior contrastada com um mal-disfarçado e selvagem anti-semitismo íntimo no caso dos cristãos, ou a afetação de segurança e tranquilidade contraposta a temores viscerais (e prescientes) no caso dos judeus, é um tópico que Schnitzler não se cansa de entremostrar.
Obviamente, porém, sua atenção concentra-se sobretudo na esfera da vida onde o público e o privado confluem, ou melhor, colidem: o sexo. Por isso, à primeira vista, suas tramas remetem aos relatos libertinos do século 18, algo que, às vezes (quando Casanova se torna seu herói ou anti-herói), fazem propositadamente. Mas o vienense não é Sade e isso fica bem claro em "Traumnovelle".
Fridolin é um médico de trinta e poucos anos, casado com Albertina e pai de uma menina. Certo dia, meio para provocarem um ao outro, marido e mulher trocam confidências acerca de pequenos flertes nos quais haviam condescendido durante um baile de máscaras da noite precedente.
A conversa se desdobra rumo a episódios mais graves ocorridos nas férias anteriores. Com a crise matrimonial, antes latente, agora deflagrada no seu âmago, o protagonista (sob cujo ponto de vista é narrada a história) envolve-se em duas noites e um dia de situações estranhas que lhe revelam o submundo orgiástico, talvez assassino, seguramente sifilítico e venal da alta e demais sociedades.
Enquanto os ambientes e situações pelos quais Fridolin transita (ou se deixa levar) são, nas suas palavras, espectrais, Albertina lhe conta, no entretempo, um sonho adúltero e homicida que tampouco é menos sórdido. Ao fim e ao cabo, a irrealidade do que um havia experimentado e a intensidade do que a outra sonhara harmonizam-se, de maneira rara em Schnitzler, num desenlace feliz cuja provisoriedade, nem por isso, deixa de ser enfatizada.
Seria, portanto, redutor caracterizar de erótica esta narrativa do vienense. O sexo é para ele, em toda sua obra, um ponto de partida, ou melhor, o ponto de apoio ideal para uma visão desencantada segundo a qual a essência das relações humanas é não tanto o confronto quanto o desencontro e uma perpétua irresolução.


Livro: Dream Story (em inglês) Autor: Arthur Schnitzler
Editoras: Penguin Books (Inglaterra) e Sun&Moon Press (EUA)



Livro: Relato Soñado (em espanhol) Editora: Sirmio Quaderns Crema (Barcelona)

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