São Paulo, Sexta-feira, 16 de Julho de 1999
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GASTRONOMIA
Receita grátis de miolos

NINA HORTA
Colunista da Folha


Quem se lembra de Hannibal Lecter no filme "O Silêncio dos Inocentes", do livro do mesmo nome? ("The Silence of the Lambs", Thomas Harris, St Martin's, Nova York). Exatamente aquele, o psiquiatra assassino e canibal que, quando entrevistado pela aspirante a agente do FBI, conta à queima roupa: "Sabe o que fiz quando um funcionário do censo quis me quantificar? Comi o fígado dele com umas favas e um belo Chianti". E o virtuosismo do autor está no barulhinho que faz, sugando a saliva, a água que lhe vem à boca, só de lembrar. Shshsh...
Já em "O Silêncio dos Inocentes", descobrimos que Hannibal Lecter é um homem de sua época, dos anos 80. Um gourmet, humor negro à parte, sempre dando uma piscadela de olhos para o leitor sobre a cultura americana. Depois de sua fuga espetacular, acham na sua cela "The Joy of Cooking", de Julia Child, a professora que ensinou os americanos a cozinhar em francês. Em francês, não um francês. Tão importante a nouvelle cuisine que uma revista de culinária chique e de páginas brilhantes oferece a Hannibal US$ 50 mil por
algumas receitinhas...
Na última vez que o vimos estava de costas sumindo no horizonte, vestido de Tom Jobim, num cenário carioca de pretinhos andando de bicicleta de cá para lá.
Pois voltou, agora, no mês de junho, em "Hannibal", outro romance de terror, com os mesmos hábitos corteses, extravagantes. É um matador que também aprecia as boas coisas da vida. Não se rende à moda da década, que é comida de mãe, de avó, de casa. Também, monstro não tem mãe, nem avó, nem casa. Pelo menos esse não tem, daí o trauma.
Qual a primeira coisa que fez depois de sua fuga? Tomou, no hotel, um Bâtard Montrachet de US$ 125. Como lhe deve ter descido bem, depois de anos de cadeia!
Gosta de vinhos, sim. No mês em que o doutor Lecter serviu o timo e pâncreas do flautista Raspail para os outros membros do Conselho da Orquestra de Baltimore, comprou duas caixas de bordeaus Chateaux Petrus. E o que mais ofereceu nessa noite? Quem deixou tudo registrado foi a revista "Town and Country". Encomendou de Iron Gate, em NY, o mais fino foie gras. Por meio do Grand Central Oyster Bar conseguiu ostras frescas de Gironde. Descreveram com detalhes entusiasmados o guisado escuro e brilhante sobre o arroz de açafrão. O gosto era uma sinfonia de baixos profundos e surpreendentes, o que só se consegue com uma redução caprichadíssima do "fond" (não se aflijam. Vítima alguma foi jamais identificada como sendo o ingrediente do guisado).
Em uma de suas fugas, o doutor se junta a uma excursão de avião, classe turística, lotada. O que não era nada para ele, acostumado com celas quase menores do que o espaço de esticar as pernas. O barulho das crianças, um pouco mais estridente do que o dos companheiros de corredor, mas, paciência...
Agora, a comida do avião não dava para encarar. Esperou que as luzes se apagassem e tirou de baixo da cadeira um pacote da Fauchon. Aninhados lá dentro, um cheiroso foie gras e figos da Anatólia ainda úmidos de seiva.
Clarice Starling, a estagiária da FBI, a bela (o livro faz lembrar "A Bela e a Fera"), imagina rastrear o monstro através de seu gosto refinado, a praga do bom gosto, segundo ele. Que casa ele alugaria? Que carro compraria? Cruza informações de computador, procura quem mandou vir de longe javalis e perdizes escocesas.
Enquanto isso, o homem calmamente montava sua cozinha na loja Hammacher Schlemmer de NY. Fogareiros potentes para a mesa, panelas de cobre da Dehillerin de Paris e nada de facas inoxidáveis difíceis de amolar.
Era mesmo um gourmet. "Clarice", diz ele, "o jantar excita o paladar e o olfato, os sentidos mais antigos e mais próximos do centro do cérebro. O paladar e o olfato moram em partes da mente que precedem a compaixão. A misericórdia não tem lugar a minha mesa".
Poderíamos terminar com uma receita grátis de miolos, de Hannibal. Uma frigideira com manteiga dourada e algumas alcaparras esmagadas. Os miolos frescos são um desafio de tão delicados e se desmancham com facilidade. É preciso empaná-los com farinha de trigo e migalhas frescas de brioche. Ralar por cima uma trufa fresca, saltear na manteiga de alcaparras, uma espremida de limão e voilà!


Livro: Hannibal
Autor: Thomas Harris
Lançamento: RandomHouse, 1999


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