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GASTRONOMIA
Receita grátis de miolos
NINA HORTA
Colunista da Folha
Quem se lembra de Hannibal
Lecter no filme "O Silêncio dos
Inocentes", do livro do mesmo
nome? ("The Silence of the
Lambs", Thomas Harris, St Martin's, Nova York). Exatamente
aquele, o psiquiatra assassino e
canibal que, quando entrevistado
pela aspirante a agente do FBI,
conta à queima roupa: "Sabe o
que fiz quando um funcionário
do censo quis me quantificar?
Comi o fígado dele com umas
favas e um belo Chianti". E
o virtuosismo do autor
está no barulhinho que
faz, sugando a saliva, a
água que lhe vem à boca,
só de lembrar. Shshsh...
Já em "O Silêncio dos Inocentes", descobrimos que Hannibal
Lecter é um homem de sua época,
dos anos 80. Um gourmet, humor
negro à parte, sempre dando uma
piscadela de olhos para o leitor
sobre a cultura americana. Depois
de sua fuga espetacular, acham na
sua cela "The Joy of Cooking", de
Julia Child, a professora que ensinou os americanos a cozinhar em
francês. Em francês, não um francês. Tão importante a nouvelle
cuisine que uma revista de culinária chique e de páginas brilhantes
oferece a Hannibal US$ 50 mil por
algumas receitinhas...
Na última vez que o vimos estava de costas sumindo no horizonte, vestido de Tom Jobim, num
cenário carioca de pretinhos andando de bicicleta de cá para lá.
Pois voltou, agora, no mês de junho, em "Hannibal", outro romance de terror, com os mesmos
hábitos corteses, extravagantes. É
um matador que também aprecia
as boas coisas da vida. Não se rende à moda da década, que é comida de mãe, de avó, de casa. Também, monstro não tem mãe, nem
avó, nem casa. Pelo menos esse
não tem, daí o trauma.
Qual a primeira coisa que fez
depois de sua fuga? Tomou, no
hotel, um Bâtard Montrachet de US$ 125. Como lhe
deve ter descido bem, depois de anos de cadeia!
Gosta de vinhos, sim.
No mês em que o doutor
Lecter serviu o timo e
pâncreas do flautista Raspail para os outros membros
do Conselho da Orquestra de Baltimore, comprou duas caixas de
bordeaus Chateaux Petrus. E o
que mais ofereceu nessa noite?
Quem deixou tudo registrado foi
a revista "Town and Country".
Encomendou de Iron Gate, em
NY, o mais fino foie gras. Por
meio do Grand Central Oyster
Bar conseguiu ostras frescas de
Gironde. Descreveram com detalhes entusiasmados o guisado escuro e brilhante sobre o arroz de
açafrão. O gosto era uma sinfonia
de baixos profundos e surpreendentes, o que só se consegue com
uma redução caprichadíssima do
"fond" (não se aflijam. Vítima alguma foi jamais identificada como sendo o ingrediente do guisado).
Em uma de suas fugas, o doutor
se junta a uma excursão de avião,
classe turística, lotada. O que não
era nada para ele, acostumado
com celas quase menores do que
o espaço de esticar as pernas. O
barulho das crianças, um pouco
mais estridente do que o dos companheiros de corredor, mas, paciência...
Agora, a comida do avião não
dava para encarar. Esperou que as
luzes se apagassem e tirou de baixo da cadeira um pacote da Fauchon. Aninhados lá dentro, um
cheiroso foie gras e figos da Anatólia ainda úmidos de seiva.
Clarice Starling, a
estagiária da FBI, a
bela (o livro faz
lembrar "A
Bela e a Fera"), imagina
rastrear o monstro através de seu
gosto refinado, a praga do bom
gosto, segundo ele. Que casa ele
alugaria? Que carro compraria?
Cruza informações de computador, procura quem mandou vir
de longe javalis e perdizes escocesas.
Enquanto isso, o homem calmamente montava sua cozinha
na loja Hammacher Schlemmer
de NY. Fogareiros potentes para a
mesa, panelas de cobre da Dehillerin de Paris e nada de facas inoxidáveis difíceis de amolar.
Era mesmo um gourmet. "Clarice", diz ele, "o jantar excita o paladar e o olfato, os sentidos mais
antigos e mais próximos do centro do cérebro. O paladar e o olfato moram em partes da mente
que precedem a compaixão. A
misericórdia não tem lugar a minha mesa".
Poderíamos terminar com uma
receita grátis de miolos, de Hannibal. Uma frigideira com manteiga dourada e algumas alcaparras esmagadas. Os miolos frescos
são um desafio de tão delicados e
se desmancham com facilidade.
É preciso empaná-los com farinha de trigo e migalhas frescas
de brioche. Ralar por cima
uma trufa fresca, saltear na
manteiga de alcaparras, uma
espremida de limão e voilà!
Livro: Hannibal
Autor: Thomas Harris
Lançamento:
RandomHouse, 1999
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