São Paulo, segunda-feira, 16 de agosto de 2004

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NELSON ASCHER

Quem lê poesia?

Quem lê poesia atualmente? Descontando os que a escrevem ou escrevem sobre ela, quase ninguém. As exíguas edições dos poetas modernos, o canto quase secreto que as livrarias lhe reservam e a perpétua lamentação de seus praticantes confirmam diariamente os juízos mais pessimistas.
Nem se trata de um fenômeno restrito ao Brasil. As obras de um francês renomado como Ives Bonnefoy são publicadas em tiragens de mil ou 1.500 exemplares, metade dos quais comprados pelas bibliotecas públicas enquanto o resto leva dez anos para esgotar. Isso ocorre num país rico e alfabetizado cujos liceus têm Racine e Baudelaire no currículo, onde não existe novela das oito e a TV dedica um espaço significativo à alta cultura.
O mesmo vale para o planeta inteiro com suas mais de 5.000 línguas, cada qual usada por um número considerável de poetas que, reunidos de quando em quando em festivais ou simpósios internacionais, compartilham lamúrias idênticas. Há exceções, claro, mas tão raras que todos já ouviram falar nelas: os milhares de fãs russos que lotavam estádios para ouvir Ievguêni Ievtuchenko ou Andrei Vozniessiênski declamarem, a popularidade nos EUA da geração beat, em especial de Allen Ginsberg, ou, na Inglaterra, do grupo Mersey Sound.
Ainda no século 19, Lord Byron e Victor Hugo se tornaram célebres em vida e seus versos foram, para os padrões da época, sucessos comerciais. Mas, para encontramos uma situação totalmente distinta, precisamos recuar milhares de anos na trajetória da espécie. De acordo com os estudiosos, a prosa, como a conhecemos, nasce com a invenção da escrita. Antes desta, as origens do mundo e dos povos individuais, suas batalhas e conquistas, a genealogia de seus deuses e reis, a justificação de seus costumes eram recebidas das gerações precedentes e transmitidas às seguintes oralmente, em algum tipo de verso.
As coisas, desde então, mudaram. Será a poesia, portanto, uma arte ou afazer em extinção? Sim: há milênios. Mas também, definitivamente, não. Ela já alcançou seu ponto histórico mais baixo e, de onde se encontra, não tem muito para onde despencar.
Tal estado não se deve ao réu de sempre: o mercado. Afinal, quando este se lembra de um poeta (Emily Dickinson em "A Escolha de Sofia" ou Auden em "Quatro Casamentos e um Funeral"), seus tomos saem do porão e chegam às vitrines. E, se ela resiste, não é graças ao altruísmo dos milhares de adolescentes de qualquer idade que julgam estar fazendo algo por sua sobrevivência. Estes são uma nota de rodapé num capítulo secundário de um tratado sobre a psicologia das massas.
A poesia segue existindo porque a maioria das pessoas, não obrigatoriamente sob a forma de volumes intitulados "Poemas Completos", continua a querê-la. Embora a explosão mundial, tão logo a tecnologia a tornou possível, da música popular seja sua melhor prova, ela está, aqui e ali, onde quer que haja linguagem articulada. Por razões que cabe aos neurocientistas explicarem, o uso corriqueiro de sua vertente prosaica gera a demanda por sua contrapartida poética.
Idealmente, o objetivo da prosa é domesticar o caos opulento da linguagem, canalizando-o em emissões de sentido inequívoco. Nada a desmerece tanto quanto chamá-la de ambígua e obscura. O principal elogio que se lhe pode fazer é qualificá-la de precisa e clara. Assim, as virtudes da poesia são geralmente defeitos na prosa e vice-versa. Enquanto um prosador escolhe palavras devido a seu sentido exato, o poeta procura as que tenham vários contraditórios, de maneira a usá-los concomitantemente. Se ele o faz para aliviar as tensões que a disciplina prosaica impõe o porre do "happy hour" depois de um dia na bolsa de valores ou para exercitar feixes neuronais atrofiados, dá na mesma. Ele o faz porque pode.
Se bem que não expliquem muito, analogias têm lá sua serventia esclarecedora que, aliás, decorre do caráter metafórico que as associa à poesia. Por exemplo, quando se lança um produto, digamos um novo modelo de automóvel, ele vem acompanhado de especificações técnicas e de um manual do usuário. Para vendê-lo, porém, recorre-se a uma argumentação diferente: seu design luxuoso e moderno, a ousadia esportiva e/ ou a distinção social que sua posse trará ao proprietário, sua justaposição a lindas mulheres e paisagens deslumbrantes etc. Mentira ou verdade? Nem uma nem outra: publicidade. Em todo caso, não é a apresentação detalhada da suspensão que faz a clientela média salivar.
Uma quantidade semanal mínima de proteínas animais e carboidratos imersa numa horta pode ser a receita da saúde, não da felicidade. Como dizia Vinicius de Moraes: "Não comerei da alface a verde pétala/ (...) Não nasci ruminante como os bois/ (...) dêem-me feijão com arroz/ E um bife, e um queijo forte, e parati/ E eu morrerei feliz do coração/ De ter vivido sem comer em vão". Infelizmente, é assim que fomos projetados: voltamos do spa e corremos para a pizzaria. Dietas que erradiquem o sabor condenam suas vítimas à obesidade e uma taça de vinho por refeição produz menos alcoólatras do que a Lei Seca.
Nossas mentes e seus sensores auditivos e visuais nos permitem distinguir, no emaranhado complexo das manifestações verbais, entre o que está sendo dito e o modo como está sendo dito. Caso tentemos reprimir um deles, seu complemento volta pela porta dos fundos. Não obstante a divisão social do trabalho e do tempo, um não existe sem o outro. Recolocando a pergunta do início, "quem lê poesia atualmente?", talvez fosse o caso de responder: direta ou indiretamente, todos nós.



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