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NELSON ASCHER
Quem lê poesia?
Quem lê poesia atualmente?
Descontando os que a escrevem ou escrevem sobre ela, quase
ninguém. As exíguas edições dos
poetas modernos, o canto quase
secreto que as livrarias lhe reservam e a perpétua lamentação de
seus praticantes confirmam diariamente os juízos mais pessimistas.
Nem se trata de um fenômeno
restrito ao Brasil. As obras de um
francês renomado como Ives Bonnefoy são publicadas em tiragens
de mil ou 1.500 exemplares, metade dos quais comprados pelas bibliotecas públicas enquanto o resto leva dez anos para esgotar. Isso
ocorre num país rico e alfabetizado cujos liceus têm Racine e Baudelaire no currículo, onde não
existe novela das oito e a TV dedica um espaço significativo à alta
cultura.
O mesmo vale para o planeta
inteiro com suas mais de 5.000
línguas, cada qual usada por um
número considerável de poetas
que, reunidos de quando em
quando em festivais ou simpósios
internacionais, compartilham lamúrias idênticas. Há exceções,
claro, mas tão raras que todos já
ouviram falar nelas: os milhares
de fãs russos que lotavam estádios
para ouvir Ievguêni Ievtuchenko
ou Andrei Vozniessiênski declamarem, a popularidade nos EUA
da geração beat, em especial de
Allen Ginsberg, ou, na Inglaterra,
do grupo Mersey Sound.
Ainda no século 19, Lord Byron
e Victor Hugo se tornaram célebres em vida e seus versos foram,
para os padrões da época, sucessos comerciais. Mas, para encontramos uma situação totalmente
distinta, precisamos recuar milhares de anos na trajetória da espécie. De acordo com os estudiosos, a prosa, como a conhecemos,
nasce com a invenção da escrita.
Antes desta, as origens do mundo
e dos povos individuais, suas batalhas e conquistas, a genealogia
de seus deuses e reis, a justificação
de seus costumes eram recebidas
das gerações precedentes e transmitidas às seguintes oralmente,
em algum tipo de verso.
As coisas, desde então, mudaram. Será a poesia, portanto, uma
arte ou afazer em extinção? Sim:
há milênios. Mas também, definitivamente, não. Ela já alcançou
seu ponto histórico mais baixo e,
de onde se encontra, não tem
muito para onde despencar.
Tal estado não se deve ao réu de
sempre: o mercado. Afinal, quando este se lembra de um poeta
(Emily Dickinson em "A Escolha
de Sofia" ou Auden em "Quatro
Casamentos e um Funeral"), seus
tomos saem do porão e chegam às
vitrines. E, se ela resiste, não é
graças ao altruísmo dos milhares
de adolescentes de qualquer idade que julgam estar fazendo algo
por sua sobrevivência. Estes são
uma nota de rodapé num capítulo secundário de um tratado sobre a psicologia das massas.
A poesia segue existindo porque
a maioria das pessoas, não obrigatoriamente sob a forma de volumes intitulados "Poemas Completos", continua a querê-la. Embora a explosão mundial, tão logo
a tecnologia a tornou possível, da
música popular seja sua melhor
prova, ela está, aqui e ali, onde
quer que haja linguagem articulada. Por razões que cabe aos
neurocientistas explicarem, o uso
corriqueiro de sua vertente prosaica gera a demanda por sua
contrapartida poética.
Idealmente, o objetivo da prosa
é domesticar o caos opulento da
linguagem, canalizando-o em
emissões de sentido inequívoco.
Nada a desmerece tanto quanto
chamá-la de ambígua e obscura.
O principal elogio que se lhe pode
fazer é qualificá-la de precisa e
clara. Assim, as virtudes da poesia são geralmente defeitos na
prosa e vice-versa. Enquanto um
prosador escolhe palavras devido
a seu sentido exato, o poeta procura as que tenham vários contraditórios, de maneira a usá-los
concomitantemente. Se ele o faz
para aliviar as tensões que a disciplina prosaica impõe o porre do
"happy hour" depois de um dia
na bolsa de valores ou para exercitar feixes neuronais atrofiados,
dá na mesma. Ele o faz porque
pode.
Se bem que não expliquem muito, analogias têm lá sua serventia
esclarecedora que, aliás, decorre
do caráter metafórico que as associa à poesia. Por exemplo, quando se lança um produto, digamos
um novo modelo de automóvel,
ele vem acompanhado de especificações técnicas e de um manual
do usuário. Para vendê-lo, porém,
recorre-se a uma argumentação
diferente: seu design luxuoso e
moderno, a ousadia esportiva e/
ou a distinção social que sua posse trará ao proprietário, sua justaposição a lindas mulheres e paisagens deslumbrantes etc. Mentira ou verdade? Nem uma nem
outra: publicidade. Em todo caso,
não é a apresentação detalhada
da suspensão que faz a clientela
média salivar.
Uma quantidade semanal mínima de proteínas animais e carboidratos imersa numa horta pode ser a receita da saúde, não da
felicidade. Como dizia Vinicius
de Moraes: "Não comerei da alface a verde pétala/ (...) Não nasci
ruminante como os bois/ (...)
dêem-me feijão com arroz/ E um
bife, e um queijo forte, e parati/ E
eu morrerei feliz do coração/ De
ter vivido sem comer em vão". Infelizmente, é assim que fomos
projetados: voltamos do spa e corremos para a pizzaria. Dietas que
erradiquem o sabor condenam
suas vítimas à obesidade e uma
taça de vinho por refeição produz
menos alcoólatras do que a Lei
Seca.
Nossas mentes e seus sensores
auditivos e visuais nos permitem
distinguir, no emaranhado complexo das manifestações verbais,
entre o que está sendo dito e o
modo como está sendo dito. Caso
tentemos reprimir um deles, seu
complemento volta pela porta dos
fundos. Não obstante a divisão
social do trabalho e do tempo, um
não existe sem o outro. Recolocando a pergunta do início,
"quem lê poesia atualmente?",
talvez fosse o caso de responder:
direta ou indiretamente, todos
nós.
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