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CONTARDO CALLIGARIS
Timor e as hesitações do sujeito moderno
Na semana passada, em várias
cidades do mundo, manifestantes
pediam uma pronta intervenção
dos EUA no Timor Leste.
Na imprensa americana, colunas e editoriais começam a cobrar
a mesma coisa. Afinal, dizem, há
mais razões de princípio para intervir agora do que havia para defender Kosovo. Timor nunca pertenceu à Indonésia, foi invadido
há 25 anos, enquanto Kosovo era
uma província da Sérvia. Então o
que estamos esperando? Até a
ONU conseguir um consenso, já
não haverá mais timorenses para
defender e Timor Leste será uma
ruína fumegante. Vamos ou não?
A pergunta é irônica, para salientar que a decisão americana,
seja qual for, responderá, de fato,
a imperativos escusos. Ela também ludibria a declaração de
Clinton depois de Kosovo, seu
"Ruanda-nunca-mais", segundo
o qual "no futuro, desde que a comunidade mundial não tenha poder de parar genocídios e limpezas étnicas, deveremos fazê-lo".
Ora, olho para as fotos dos manifestantes europeus, australianos
e americanos e alucino. Eles me
parecem ser exatamente os mesmos que, poucos meses atrás, protestavam contra a intervenção
americana em Kosovo. Mas também os mesmos que, há um ano,
protestavam contra a inação dos
EUA frente à tragédia de Kosovo
ou da Bósnia.
Minha alucinação tem algum
fundamento, pois na imprensa
são os mesmos editorialistas e colunistas que podem invocar a intervenção dos EUA e que já os
amaldiçoaram por seu intervencionismo. É assim: "Como conseguem ficar insensíveis, quando
têm toda condição de agir?". E logo depois: "Mas acham que são o
quê? Os policiais do planeta?".
Nessa altura, os EUA não têm
como escapar de um julgamento
sumário.
No caso de Timor, se eles não intervêm é porque, por exemplo, a
Indonésia é mais importante do
que a Sérvia e eles têm interesses
comerciais e geopolíticos lá.
Agora, se eles interviessem, não
seria por razões humanitárias ou
de princípio. Seria justamente
porque eles têm interesses comerciais e geopolíticos na região e
precisam humilhar e, portanto,
controlar a Indonésia.
Ou seja, as mesmas hipóteses
podem servir para infamar escolhas opostas. O importante é criticar, invalidar. Como se, para preservar e mostrar nossa independência, fosse necessário discordar.
Há duas explicações para isso.
Uma é a extraordinária ambivalência de todos (inclusive dos
próprios norte-americanos) em
relação aos Estados Unidos, objeto de amores e ódios simultâneos
e ferozes. Mas essa primeira razão
pode esperar.
Hoje me interessa a outra, mais
geral e fundamental. Ela reside na
extraordinária disposição moral
da subjetividade moderna.
A modernidade começa com
uma recusa. Seu gesto inaugural
consiste em dizer não às tradições
estabelecidas e em confiar nas
cartas que saberemos eventualmente puxar das mangas de nossos casacos. O sujeito da sociedade
tradicional se realizava obedecendo, se encontrava e se reconhecia
aquiescendo à ordem do mundo.
Nós, modernos, só temos a impressão de que somos nós mesmos, plenamente realizados,
quando dizemos não. Recusar e
revolucionar são verbos que nos
definem. Portanto, em princípio,
sabemos impor mudanças substanciais ao mundo. E, de fato, impusemos. Mas o problema é que,
justamente por causa dessa disposição contestadora, agora encontramos uma dificuldade crescente
em agir positivamente.
Somos moralmente poderosíssimos, censores indignados e intérpretes das intenções ocultas (inclusive das nossas próprias): nada
escapa ao nosso crivo. Mas somos
também moralmente fraquíssimos, pois essa hipertrofia crítica
acaba dificultando qualquer conduta positiva.
Agir se torna difícil, pois estamos convencidos de que o exercício de nossa nobre subjetividade
reside não no ato, mas na crítica
-nunca no positivo, sempre no
negativo. Logo, a crítica passa a
preceder os atos e a paralisia segue inevitavelmente.
Banalmente, somos sempre do
contra, convencidos como eternos
adolescentes que só seremos adultos, e respeitados como tais, na
condição de discordar. Facilmente reconhecemos plena legitimidade a qualquer crítica, só pelo fato
dela ser articulada por alguém.
Agora, considerar legítima uma
ação é outra história: aí, de repente, precisamos de consensos cada
vez mais amplos. No caso de Timor chegou-se à idéia de que a intervenção seria legítima só se a
própria Indonésia concordar. Será que estamos esperando uma
reforma do sistema jurídico onde
condenações só valeriam se o culpado aceitar?
Os povos de Timor, de Kosovo
ou de Ruanda interessam às nossas belas almas secundariamente.
Na verdade nos importa protestar
e cobrir de opróbrio os preguiçosos que não socorrem as vítimas, e
protestar e cobrir do mesmo opróbrio os truculentos que intervêm.
Adoramos supor, escondidas no
coração de ambos, as intenções
ocultas que confirmam nossas
piores suspeitas. Nobre mesmo só
é a arte de não agir. Pois toda
ação é interesseira e merece um
olhar cínico.
O espírito crítico moderno tende
a se morder o rabo.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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