São Paulo, Quinta-feira, 16 de Setembro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS

Timor e as hesitações do sujeito moderno

Na semana passada, em várias cidades do mundo, manifestantes pediam uma pronta intervenção dos EUA no Timor Leste.
Na imprensa americana, colunas e editoriais começam a cobrar a mesma coisa. Afinal, dizem, há mais razões de princípio para intervir agora do que havia para defender Kosovo. Timor nunca pertenceu à Indonésia, foi invadido há 25 anos, enquanto Kosovo era uma província da Sérvia. Então o que estamos esperando? Até a ONU conseguir um consenso, já não haverá mais timorenses para defender e Timor Leste será uma ruína fumegante. Vamos ou não?
A pergunta é irônica, para salientar que a decisão americana, seja qual for, responderá, de fato, a imperativos escusos. Ela também ludibria a declaração de Clinton depois de Kosovo, seu "Ruanda-nunca-mais", segundo o qual "no futuro, desde que a comunidade mundial não tenha poder de parar genocídios e limpezas étnicas, deveremos fazê-lo".
Ora, olho para as fotos dos manifestantes europeus, australianos e americanos e alucino. Eles me parecem ser exatamente os mesmos que, poucos meses atrás, protestavam contra a intervenção americana em Kosovo. Mas também os mesmos que, há um ano, protestavam contra a inação dos EUA frente à tragédia de Kosovo ou da Bósnia.
Minha alucinação tem algum fundamento, pois na imprensa são os mesmos editorialistas e colunistas que podem invocar a intervenção dos EUA e que já os amaldiçoaram por seu intervencionismo. É assim: "Como conseguem ficar insensíveis, quando têm toda condição de agir?". E logo depois: "Mas acham que são o quê? Os policiais do planeta?".
Nessa altura, os EUA não têm como escapar de um julgamento sumário.
No caso de Timor, se eles não intervêm é porque, por exemplo, a Indonésia é mais importante do que a Sérvia e eles têm interesses comerciais e geopolíticos lá.
Agora, se eles interviessem, não seria por razões humanitárias ou de princípio. Seria justamente porque eles têm interesses comerciais e geopolíticos na região e precisam humilhar e, portanto, controlar a Indonésia.
Ou seja, as mesmas hipóteses podem servir para infamar escolhas opostas. O importante é criticar, invalidar. Como se, para preservar e mostrar nossa independência, fosse necessário discordar. Há duas explicações para isso.
Uma é a extraordinária ambivalência de todos (inclusive dos próprios norte-americanos) em relação aos Estados Unidos, objeto de amores e ódios simultâneos e ferozes. Mas essa primeira razão pode esperar.
Hoje me interessa a outra, mais geral e fundamental. Ela reside na extraordinária disposição moral da subjetividade moderna.
A modernidade começa com uma recusa. Seu gesto inaugural consiste em dizer não às tradições estabelecidas e em confiar nas cartas que saberemos eventualmente puxar das mangas de nossos casacos. O sujeito da sociedade tradicional se realizava obedecendo, se encontrava e se reconhecia aquiescendo à ordem do mundo.
Nós, modernos, só temos a impressão de que somos nós mesmos, plenamente realizados, quando dizemos não. Recusar e revolucionar são verbos que nos definem. Portanto, em princípio, sabemos impor mudanças substanciais ao mundo. E, de fato, impusemos. Mas o problema é que, justamente por causa dessa disposição contestadora, agora encontramos uma dificuldade crescente em agir positivamente.
Somos moralmente poderosíssimos, censores indignados e intérpretes das intenções ocultas (inclusive das nossas próprias): nada escapa ao nosso crivo. Mas somos também moralmente fraquíssimos, pois essa hipertrofia crítica acaba dificultando qualquer conduta positiva.
Agir se torna difícil, pois estamos convencidos de que o exercício de nossa nobre subjetividade reside não no ato, mas na crítica -nunca no positivo, sempre no negativo. Logo, a crítica passa a preceder os atos e a paralisia segue inevitavelmente.
Banalmente, somos sempre do contra, convencidos como eternos adolescentes que só seremos adultos, e respeitados como tais, na condição de discordar. Facilmente reconhecemos plena legitimidade a qualquer crítica, só pelo fato dela ser articulada por alguém. Agora, considerar legítima uma ação é outra história: aí, de repente, precisamos de consensos cada vez mais amplos. No caso de Timor chegou-se à idéia de que a intervenção seria legítima só se a própria Indonésia concordar. Será que estamos esperando uma reforma do sistema jurídico onde condenações só valeriam se o culpado aceitar?
Os povos de Timor, de Kosovo ou de Ruanda interessam às nossas belas almas secundariamente. Na verdade nos importa protestar e cobrir de opróbrio os preguiçosos que não socorrem as vítimas, e protestar e cobrir do mesmo opróbrio os truculentos que intervêm. Adoramos supor, escondidas no coração de ambos, as intenções ocultas que confirmam nossas piores suspeitas. Nobre mesmo só é a arte de não agir. Pois toda ação é interesseira e merece um olhar cínico.
O espírito crítico moderno tende a se morder o rabo.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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