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São Paulo, terça-feira, 16 de setembro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Diante da própria dor

Termina domingo, no centro de fotografia do Hôtel Sully, em Paris, uma exposição curiosa. Durante 18 anos, entre 1963 e 1981, Li Zhensheng foi repórter fotográfico do maior jornal da província de Heilongjian, no extremo nordeste da China. As fotos reunidas na exposição e transformadas em livro pela editora Phaidon ("Le Petit Livre Rouge d'un Photographe Chinois", título que remete ironicamente ao famoso "Pequeno Livro Vermelho", a Bíblia do maoísmo) ficaram escondidas por quase 40 anos e retratam os horrores da Revolução Cultural.
A exposição de Li Zhensheng vem a calhar a propósito do livro de Susan Sontag recém-publicado no Brasil, "Diante da Dor dos Outros". O fotógrafo trabalhava para o maior jornal da Manchúria. Era, como todo repórter fotográfico na época, um retratista oficial do regime. Fazia parte de suas funções registrar as homenagens e a veneração a Mao, os trabalhadores nas fábricas e os camponeses no campo, além de retocar as fotos que não se adequassem à "realidade do regime". Era inevitável que acabasse fotografando também os ostensivos processos públicos de perseguição e punição aos indivíduos acusados de revisionismo ou anticomunismo, que serviam de exemplo para o resto da população.
Em meados dos anos 60, diante de um país desgastado pela fome e pelo fracasso das comunas populares, Mao exortou os chineses a abraçarem uma nova política sob o pretexto de erradicar o revisionismo e a burocracia. Na introdução ao livro de fotos de Li Zhengsheng, o sinólogo Jonathan D. Spence se pergunta sobre o que teria levado milhões de jovens a "sucumbir à retórica deliberadamente lançada por Mao às forças da desordem" durante a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976: "De que fontes surgiu a violência da juventude, e que lógica foi capaz de levar esses indivíduos a avalizar os castigos brutais, muitas vezes fatais, (...) que infligiram aos mais velhos?".
Li Zhensheng fotografou a sanha coletiva dessa juventude à procura de bodes expiatórios entre intelectuais, professores, políticos caídos em desgraça, "pequenos burgueses", pequenos proprietários de terra ou simplesmente filhos e parentes de gente previamente acusada de comportamento anticomunista. São fotos de pessoas humilhadas - e às vezes executadas - em praça pública. Como os ventos podiam mudar de uma hora para outra, ninguém estava livre de ser pego para Cristo. Nem o próprio fotógrafo. Qualquer um podia ser chamado de revisionista - e acusar devia dar a sensação de afastar, ou ao menos adiar esse risco.
A certa altura, os repórteres fotográficos chineses foram instruídos pelas autoridades a entregar os negativos dessas imagens "negativas". Muitos acataram a ordem, e a maioria dos registros dos horrores da Revolução Cultural desapareceu. Li Zhengsheng preferiu preservar suas "imagens negativas" em envelopes escondidos em gavetas com fundo falso, sabendo do perigo que corria. Em 1968, acusado de "pequeno burguês" por um comitê de estudantes que tomou o jornal, os chamados "guardas vermelhos", o fotógrafo foi enviado a um campo de reeducação e trabalhos forçados, onde passou dois anos longe da família. Suas fotos, por sorte, nunca foram descobertas. A punição teria sido muito pior.
Os horrores, porém, não terminaram com a Revolução Cultural e a morte de Mao. Em 1980, Li Zhengsheng fotografou a execução de Wang Shouxin, uma ex-secretária da seção regional do partido durante a Revolução Cultural, acusada de corrupção. Para impedi-la de se defender, os guardas deslocaram o maxilar da acusada. Li Zhengsheng a fotografou no caminhão que a levou para o local da execução e depois, amarrada, de joelhos na neve, ao receber um tiro na nuca.
As imagens de Li Zhengsheng não foram concebidas para denunciar, embora hoje ele possa dizer sem risco: "Se vocês olharem as minhas fotografias da época, verão que eu já começava a elaborar uma opinião sobre os acontecimentos, especialmente quando as pessoas convertiam os slogans de Mao em canções e as entoavam com entusiasmo. Quando eu fotografava esse tipo de cena, consciente ou não, muitas vezes escolhia ângulos ou composições que mostravam a que ponto tudo aquilo me parecia um tanto louco".
O objetivo original dessas imagens era exaltar e servir de exemplo, e por isso se tornaram tão mais idôneas na sua denúncia inconsciente. Não há nenhum voyeurismo. O ponto de vista é interior, de alguém que observa nos outros o que pode ser infligido a si mesmo no dia seguinte. São imagens que retratam, antes de mais nada, o terror silencioso do fotógrafo, do indivíduo por um instante separado da massa, a observá-la, perplexo.
As reservas morais eventualmente levantadas contra as intenções de fotógrafos oportunistas e exteriores aos fatos já não se aplicam. Li Zhengsheng estava tão sujeito aos fatos quanto as pessoas fotografadas. Ao documentar o exemplo, ele revelou o equívoco. Como diz Susan Sontag: "As intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso".

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