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BERNARDO CARVALHO
Diante da própria dor
Termina domingo, no centro de fotografia do Hôtel
Sully, em Paris, uma exposição
curiosa. Durante 18 anos, entre
1963 e 1981, Li Zhensheng foi repórter fotográfico do maior jornal
da província de Heilongjian, no
extremo nordeste da China. As fotos reunidas na exposição e transformadas em livro pela editora
Phaidon ("Le Petit Livre Rouge
d'un Photographe Chinois", título
que remete ironicamente ao famoso "Pequeno Livro Vermelho",
a Bíblia do maoísmo) ficaram escondidas por quase 40 anos e retratam os horrores da Revolução
Cultural.
A exposição de Li Zhensheng
vem a calhar a propósito do livro
de Susan Sontag recém-publicado
no Brasil, "Diante da Dor dos Outros". O fotógrafo trabalhava para o maior jornal da Manchúria.
Era, como todo repórter fotográfico na época, um retratista oficial
do regime. Fazia parte de suas
funções registrar as homenagens
e a veneração a Mao, os trabalhadores nas fábricas e os camponeses no campo, além de retocar as
fotos que não se adequassem à
"realidade do regime". Era inevitável que acabasse fotografando
também os ostensivos processos
públicos de perseguição e punição
aos indivíduos acusados de revisionismo ou anticomunismo, que
serviam de exemplo para o resto
da população.
Em meados dos anos 60, diante
de um país desgastado pela fome
e pelo fracasso das comunas populares, Mao exortou os chineses
a abraçarem uma nova política
sob o pretexto de erradicar o revisionismo e a burocracia. Na introdução ao livro de fotos de Li
Zhengsheng, o sinólogo Jonathan
D. Spence se pergunta sobre o que
teria levado milhões de jovens a
"sucumbir à retórica deliberadamente lançada por Mao às forças
da desordem" durante a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976:
"De que fontes surgiu a violência
da juventude, e que lógica foi capaz de levar esses indivíduos a
avalizar os castigos brutais, muitas vezes fatais, (...) que infligiram
aos mais velhos?".
Li Zhensheng fotografou a sanha coletiva dessa juventude à
procura de bodes expiatórios entre intelectuais, professores, políticos caídos em desgraça, "pequenos burgueses", pequenos proprietários de terra ou simplesmente filhos e parentes de gente
previamente acusada de comportamento anticomunista. São fotos
de pessoas humilhadas - e às vezes executadas - em praça pública. Como os ventos podiam
mudar de uma hora para outra,
ninguém estava livre de ser pego
para Cristo. Nem o próprio fotógrafo. Qualquer um podia ser
chamado de revisionista - e acusar devia dar a sensação de afastar, ou ao menos adiar esse risco.
A certa altura, os repórteres fotográficos chineses foram instruídos pelas autoridades a entregar
os negativos dessas imagens "negativas". Muitos acataram a ordem, e a maioria dos registros dos
horrores da Revolução Cultural
desapareceu. Li Zhengsheng preferiu preservar suas "imagens negativas" em envelopes escondidos
em gavetas com fundo falso, sabendo do perigo que corria. Em
1968, acusado de "pequeno burguês" por um comitê de estudantes que tomou o jornal, os chamados "guardas vermelhos", o fotógrafo foi enviado a um campo de
reeducação e trabalhos forçados,
onde passou dois anos longe da
família. Suas fotos, por sorte,
nunca foram descobertas. A punição teria sido muito pior.
Os horrores, porém, não terminaram com a Revolução Cultural
e a morte de Mao. Em 1980, Li
Zhengsheng fotografou a execução de Wang Shouxin, uma ex-secretária da seção regional do partido durante a Revolução Cultural, acusada de corrupção. Para
impedi-la de se defender, os guardas deslocaram o maxilar da acusada. Li Zhengsheng a fotografou
no caminhão que a levou para o
local da execução e depois, amarrada, de joelhos na neve, ao receber um tiro na nuca.
As imagens de Li Zhengsheng
não foram concebidas para denunciar, embora hoje ele possa
dizer sem risco: "Se vocês olharem
as minhas fotografias da época,
verão que eu já começava a elaborar uma opinião sobre os acontecimentos, especialmente quando as pessoas convertiam os slogans de Mao em canções e as entoavam com entusiasmo. Quando
eu fotografava esse tipo de cena,
consciente ou não, muitas vezes
escolhia ângulos ou composições
que mostravam a que ponto tudo
aquilo me parecia um tanto louco".
O objetivo original dessas imagens era exaltar e servir de exemplo, e por isso se tornaram tão
mais idôneas na sua denúncia inconsciente. Não há nenhum voyeurismo. O ponto de vista é interior, de alguém que observa nos
outros o que pode ser infligido a si
mesmo no dia seguinte. São imagens que retratam, antes de mais
nada, o terror silencioso do fotógrafo, do indivíduo por um instante separado da massa, a observá-la, perplexo.
As reservas morais eventualmente levantadas contra as intenções de fotógrafos oportunistas
e exteriores aos fatos já não se
aplicam. Li Zhengsheng estava
tão sujeito aos fatos quanto as
pessoas fotografadas. Ao documentar o exemplo, ele revelou o
equívoco. Como diz Susan Sontag: "As intenções do fotógrafo
não determinam o significado da
foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das
lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso".
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