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ARTES PLÁSTICAS
Manuscritos do pintor, um dos maiores da história dos EUA, trazem reflexões sobre sua obra posterior
Abstração de Rothko retorna em escritos
PHOEBE HOBAN
DO "NEW YORK TIMES"
Christopher Rothko só tinha
seis anos quando seu famoso pai,
o pintor Mark Rothko, se matou,
em 1970. "Tenho algumas lembranças, que posso contar nos dedos, mas estranhamente é a voz
dele que mais persiste", afirma.
Agora, Rothko encontrou uma
maneira de canalizar a voz de seu
pai, não só para uso pessoal mas
para o público, e no processo redescobriu um manuscrito de
Mark Rothko desaparecido por
muito tempo, que ajuda a iluminar as bases filosóficas da série de
quadros conhecida como "Color
Field", a porção mais importante
da carreira do artista.
Neste mês, a Yale University
Press publicará os escritos em um
volume enganosamente curto,
intitulado, "The Artist's Reality:
Philosophies of Art" [A Realidade
do Artista: Filosofias da Arte], o
único livro de Mark Rothko. No
texto, o pintor reflete sobre a história da arte e o lugar e função do
artista no mundo. Também começa a explorar o uso de cor, luz e
espaço atrás da "unidade última".
"Vou fazer uma palestra sobre o
livro, chamada "A Bola de Cristal
de Mark Rothko", porque o texto
pressagia a um ponto sobrenatural, e quase perturbador, o trabalho que viria", disse Christopher
Rothko, que se refere a algumas
passagens do texto como "um
manifesto abstrato".
"Porque a arte é sempre a generalização final", escreveu o artista.
"Ela deve fornecer as implicações
de infinito a qualquer situação. E
o nosso ambiente é diversificado
demais para permitir unidade filosófica, precisa encontrar algum
símbolo que expresse pelo menos
o desejo dessa unidade."
O filho explicou, em um almoço
na semana passada, que "ele estava à procura da confluência entre
religião, filosofia e poesia, que não
é exatamente o tema único de sua
pintura posterior, mas certamente oferece uma maneira rica e significativa de compreendê-las".
A prosa às vezes forçada do livro
oferece percepções sobre os pensamentos de Rothko quanto à arte antiga e primitiva, a renascentista e o surrealismo, entre outros tópicos. Reflete a intensa curiosidade e ambição intelectual do
autor, bem como sua inclinação à
polêmica. Ainda que Rothko jamais faça referência direta à sua
arte, ou mesmo reconheça ser
pintor, o livro revela algo sobre
sua vida naquele momento. Em
sua discussão desdenhosa quanto
às artes decorativas, por exemplo,
o texto indica o desgaste no casamento com sua primeira mulher,
Edith Sachar, designer de jóias
que em determinado momento o
forçou a trabalhar para ela.
A história de como o livro foi redescoberto, contada por Christopher Rothko em sua introdução, é
muito complicada. Apenas seis
meses depois do suicídio do artista, aos 66 anos, sua mulher, Mell,
48, morreu de ataque cardíaco. Os
filhos do casal, Christopher e sua
irmã Kate, então com 19 anos, foram imediatamente arremessados a mais de uma década de batalhas judiciais dignas de Dickens,
envolvendo os testamenteiros de
Rothko e a galeria de arte Marlborough, em Manhattan, que terminou multada em milhões de dólares por seu papel no escândalo.
Ainda que Christopher e Kate
Rothko tivessem sido informados
de que entre os pertences pessoais
de seu pai havia um manuscrito
inacabado, foi só em 1988 que as
páginas foram descobertas.
Assim que as disputas judiciais
foram encerradas, surgiu uma batalha com a Receita norte-americana, e mais alguns anos foram
perdidos em disputas quanto ao
valor dos quadros, que havia aumentado imensamente depois da
morte do artista, antes que os herdeiros enfim ganhassem o controle das obras de seu pai, no final
dos anos 80.
"Foi só quando eu entrei na faculdade, em 1986, que pendurei
um quadro do meu pai no apartamento", disse Rothko.
Cerca de dez anos atrás, Christopher, 41, se envolveu mais com
a arte de seu pai, e terminou por
abandonar seu trabalho como
psicoterapeuta para dedicar tempo integral à arte. "Eu colaborei
muito na organização de diversas
exposições", diz, "e mexo com os
quadros praticamente todo dia,
de modo que aprendi a conhecê-los muito bem. E, por meio dos
quadros, aprendi mais sobre o
meu pai, existe uma forma de
compreensão e conhecimento
que surge dessa maneira."
Rothko estudou psicoterapia
(tem um doutorado em psicologia clínica pela Universidade do
Michigan), e seu treinamento o
ajudou a aceitar o suicídio do pai.
"Nunca me contaram uma versão
adocicada da maneira pela qual
ele morreu", diz. "Fui informado
diretamente, e naquela idade a
história não significa a mesma
coisa que poderia significar mais
tarde", disse. "Ele morreu, e pronto. O que sinto, em geral, é tristeza
por ele. Sinto até que ponto ele deveria estar desesperado, para simplesmente jogar tudo fora."
Christopher Rothko demorou
quase um ano para editar o amarfanhado manuscrito de 226 páginas, que aparentemente foi escrito em 1940 e 1941, quando Rothko
sofreu uma crise de depressão e
abandonou os pincéis por um
ano, se dedicando a livros sobre
filosofia e mitos. (Uma das páginas data de 1941, ainda que o pintor já se referisse ao manuscrito
em cartas trocadas com o pintor
Milton Avery em 1936).
Um problema especialmente
difícil era a seqüência de capítulos, que, embora sugerida em algumas das anotações de seu pai,
não estava clara ao longo do texto.
Outro problema foi o fato de que
o artista escreveu diversas versões
de cada capítulo, e não concluiu
alguns deles.
Ainda assim, o filho estava despreparado para a intimidade que
o processo propiciaria. "Descobri
que estava mantendo uma relação
estranhamente profissional, quase de coleguismo, com meu pai,
algo que eu não havia antecipado", disse Rothko. "Foi como
conversar com ele."
Ele também descobriu que era
muito mais parecido com o pai do
que imaginava. "Eu estava compartilhando de suas idéias e percebendo vislumbres de um homem que acreditava conhecer, e
ao mesmo tempo vislumbrando a
mim mesmo", disse. "Acabei me
apanhando em trocas de opiniões
artísticas com ele, nós dois somos
muito críticos com relação a Michelangelo. Quem mais não gosta
de Michelangelo?"
Jeffrey Weiss, diretor da Galeria
Nacional de Arte norte-americana e curador de uma retrospectiva
Rothko em 1998, disse que o texto
"é pesado, mas importa porque
pertence ao seu período formativo, e demonstra o processo de trabalho da mente do artista, à medida que este enfrenta as grandes
idéias sobre a história da cor e do
espaço na arte, temas essenciais
de seu trabalho posterior".
Para Christopher Rothko, o trabalho também funciona como
um metafórico álbum de família.
"Acredito que a coisa mais concreta sobre o meu pai, em minha
vida, é sua ausência", disse.
"Há quadros que têm muito a
dizer mas de forma tão abstrata",
afirma Rothko. "O texto continua
a ser filosófico, não há revelações,
mas ouço a voz dele, vejo a página
escrita, e sua letra, e as palavras
canceladas e reformuladas, e os
desenhos. Era um processo fascinante. Ao redescobrir o livro, redescobri meu pai."
De fato, pela primeira vez desde
a infância, Christopher se viu chamando o pai de "papai". "Eu estava tentando encontrar alguma
coisa", disse. "E ele tinha acabado
de escrever a mais complicada
sentença da história humana, e eu
me pegava exclamando "pô, papai, qual é?". Isso me chocou, jamais dirigi uma palavra a ele desde que tinha seis anos, mas lá estava eu conversando com o fantasma. Mas não era um fantasma,
porque eu o tinha nas mãos de alguma estranha maneira."
E o que o seu pai pensaria sobre
o livro concluído? "Acho que ele
sentiria que o livro o descreve,
mas que gostaria de contar todas
as maneiras pelas quais havia mudado", diz Rothko. "Acho que ele
se reconheceria, mas que iria querer produzir mais dez rascunhos."
Tradução de Paulo Migliacci
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