São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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ARTES PLÁSTICAS

Manuscritos do pintor, um dos maiores da história dos EUA, trazem reflexões sobre sua obra posterior

Abstração de Rothko retorna em escritos

PHOEBE HOBAN
DO "NEW YORK TIMES"

Christopher Rothko só tinha seis anos quando seu famoso pai, o pintor Mark Rothko, se matou, em 1970. "Tenho algumas lembranças, que posso contar nos dedos, mas estranhamente é a voz dele que mais persiste", afirma.
Agora, Rothko encontrou uma maneira de canalizar a voz de seu pai, não só para uso pessoal mas para o público, e no processo redescobriu um manuscrito de Mark Rothko desaparecido por muito tempo, que ajuda a iluminar as bases filosóficas da série de quadros conhecida como "Color Field", a porção mais importante da carreira do artista.
Neste mês, a Yale University Press publicará os escritos em um volume enganosamente curto, intitulado, "The Artist's Reality: Philosophies of Art" [A Realidade do Artista: Filosofias da Arte], o único livro de Mark Rothko. No texto, o pintor reflete sobre a história da arte e o lugar e função do artista no mundo. Também começa a explorar o uso de cor, luz e espaço atrás da "unidade última".
"Vou fazer uma palestra sobre o livro, chamada "A Bola de Cristal de Mark Rothko", porque o texto pressagia a um ponto sobrenatural, e quase perturbador, o trabalho que viria", disse Christopher Rothko, que se refere a algumas passagens do texto como "um manifesto abstrato".
"Porque a arte é sempre a generalização final", escreveu o artista. "Ela deve fornecer as implicações de infinito a qualquer situação. E o nosso ambiente é diversificado demais para permitir unidade filosófica, precisa encontrar algum símbolo que expresse pelo menos o desejo dessa unidade."
O filho explicou, em um almoço na semana passada, que "ele estava à procura da confluência entre religião, filosofia e poesia, que não é exatamente o tema único de sua pintura posterior, mas certamente oferece uma maneira rica e significativa de compreendê-las".
A prosa às vezes forçada do livro oferece percepções sobre os pensamentos de Rothko quanto à arte antiga e primitiva, a renascentista e o surrealismo, entre outros tópicos. Reflete a intensa curiosidade e ambição intelectual do autor, bem como sua inclinação à polêmica. Ainda que Rothko jamais faça referência direta à sua arte, ou mesmo reconheça ser pintor, o livro revela algo sobre sua vida naquele momento. Em sua discussão desdenhosa quanto às artes decorativas, por exemplo, o texto indica o desgaste no casamento com sua primeira mulher, Edith Sachar, designer de jóias que em determinado momento o forçou a trabalhar para ela.
A história de como o livro foi redescoberto, contada por Christopher Rothko em sua introdução, é muito complicada. Apenas seis meses depois do suicídio do artista, aos 66 anos, sua mulher, Mell, 48, morreu de ataque cardíaco. Os filhos do casal, Christopher e sua irmã Kate, então com 19 anos, foram imediatamente arremessados a mais de uma década de batalhas judiciais dignas de Dickens, envolvendo os testamenteiros de Rothko e a galeria de arte Marlborough, em Manhattan, que terminou multada em milhões de dólares por seu papel no escândalo.
Ainda que Christopher e Kate Rothko tivessem sido informados de que entre os pertences pessoais de seu pai havia um manuscrito inacabado, foi só em 1988 que as páginas foram descobertas.
Assim que as disputas judiciais foram encerradas, surgiu uma batalha com a Receita norte-americana, e mais alguns anos foram perdidos em disputas quanto ao valor dos quadros, que havia aumentado imensamente depois da morte do artista, antes que os herdeiros enfim ganhassem o controle das obras de seu pai, no final dos anos 80.
"Foi só quando eu entrei na faculdade, em 1986, que pendurei um quadro do meu pai no apartamento", disse Rothko.
Cerca de dez anos atrás, Christopher, 41, se envolveu mais com a arte de seu pai, e terminou por abandonar seu trabalho como psicoterapeuta para dedicar tempo integral à arte. "Eu colaborei muito na organização de diversas exposições", diz, "e mexo com os quadros praticamente todo dia, de modo que aprendi a conhecê-los muito bem. E, por meio dos quadros, aprendi mais sobre o meu pai, existe uma forma de compreensão e conhecimento que surge dessa maneira."
Rothko estudou psicoterapia (tem um doutorado em psicologia clínica pela Universidade do Michigan), e seu treinamento o ajudou a aceitar o suicídio do pai. "Nunca me contaram uma versão adocicada da maneira pela qual ele morreu", diz. "Fui informado diretamente, e naquela idade a história não significa a mesma coisa que poderia significar mais tarde", disse. "Ele morreu, e pronto. O que sinto, em geral, é tristeza por ele. Sinto até que ponto ele deveria estar desesperado, para simplesmente jogar tudo fora."
Christopher Rothko demorou quase um ano para editar o amarfanhado manuscrito de 226 páginas, que aparentemente foi escrito em 1940 e 1941, quando Rothko sofreu uma crise de depressão e abandonou os pincéis por um ano, se dedicando a livros sobre filosofia e mitos. (Uma das páginas data de 1941, ainda que o pintor já se referisse ao manuscrito em cartas trocadas com o pintor Milton Avery em 1936).
Um problema especialmente difícil era a seqüência de capítulos, que, embora sugerida em algumas das anotações de seu pai, não estava clara ao longo do texto. Outro problema foi o fato de que o artista escreveu diversas versões de cada capítulo, e não concluiu alguns deles.
Ainda assim, o filho estava despreparado para a intimidade que o processo propiciaria. "Descobri que estava mantendo uma relação estranhamente profissional, quase de coleguismo, com meu pai, algo que eu não havia antecipado", disse Rothko. "Foi como conversar com ele."
Ele também descobriu que era muito mais parecido com o pai do que imaginava. "Eu estava compartilhando de suas idéias e percebendo vislumbres de um homem que acreditava conhecer, e ao mesmo tempo vislumbrando a mim mesmo", disse. "Acabei me apanhando em trocas de opiniões artísticas com ele, nós dois somos muito críticos com relação a Michelangelo. Quem mais não gosta de Michelangelo?"
Jeffrey Weiss, diretor da Galeria Nacional de Arte norte-americana e curador de uma retrospectiva Rothko em 1998, disse que o texto "é pesado, mas importa porque pertence ao seu período formativo, e demonstra o processo de trabalho da mente do artista, à medida que este enfrenta as grandes idéias sobre a história da cor e do espaço na arte, temas essenciais de seu trabalho posterior".
Para Christopher Rothko, o trabalho também funciona como um metafórico álbum de família. "Acredito que a coisa mais concreta sobre o meu pai, em minha vida, é sua ausência", disse.
"Há quadros que têm muito a dizer mas de forma tão abstrata", afirma Rothko. "O texto continua a ser filosófico, não há revelações, mas ouço a voz dele, vejo a página escrita, e sua letra, e as palavras canceladas e reformuladas, e os desenhos. Era um processo fascinante. Ao redescobrir o livro, redescobri meu pai."
De fato, pela primeira vez desde a infância, Christopher se viu chamando o pai de "papai". "Eu estava tentando encontrar alguma coisa", disse. "E ele tinha acabado de escrever a mais complicada sentença da história humana, e eu me pegava exclamando "pô, papai, qual é?". Isso me chocou, jamais dirigi uma palavra a ele desde que tinha seis anos, mas lá estava eu conversando com o fantasma. Mas não era um fantasma, porque eu o tinha nas mãos de alguma estranha maneira."
E o que o seu pai pensaria sobre o livro concluído? "Acho que ele sentiria que o livro o descreve, mas que gostaria de contar todas as maneiras pelas quais havia mudado", diz Rothko. "Acho que ele se reconheceria, mas que iria querer produzir mais dez rascunhos."


Tradução de Paulo Migliacci

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