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MÚSICA ERUDITA
Osesp agora é a orquestra do Brasil
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Quando a orquestra atacou o
segundo bis -o esperado
"Mourão", de Guerra-Peixe-,
ninguém mais tinha dúvida da
consagração. Foi um caminho
longo e tortuoso; mas finalmente,
depois de tocar em Buenos Aires
(2001), Nova York (2002) e Zurique (2003), a Osesp chegava ao
Rio de Janeiro. Quer dizer: chegava ao Brasil, que a acolheu de braços abertos, para além de qualquer velha rivalidade.
Tortuoso e longo também foi o
caminho imediatamente anterior
ao fim de semana no Teatro Municipal carioca. Nada menos do
que 13 outras capitais, começando por Belo Horizonte e Brasília e
continuando por Goiânia, Manaus, Belém, Teresina, Fortaleza,
Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador. Tinha
razão o maestro John Neschling
ao dizer, então, que a Osesp agora
passa a ser definitivamente uma
orquestra do Brasil, mais do que
do Estado de São Paulo -muito
embora este continue o seu único
mantenedor oficial.
Foi o bastante para que alguém
gritasse "bravo!" do balcão, enquanto o governador Geraldo
Alckmin colhia os aplausos do
povo do Rio. Do outro lado, os camarotes oficiais chamavam a
atenção pelo vazio. Eram os únicos centímetros livres do teatro,
aliás; e o silêncio dali parecia chocantemente inapropriado, em
contraste com o silêncio musicalíssimo da multidão, escutando
depois a "Nona Sinfonia" de Mahler (1860-1911).
Só a escolha da "Nona" já valia
como voto de seriedade da orquestra e expressão de respeito e
confiança pela platéia. Última sinfonia composta pelo compositor
austríaco, num período de crise
afetiva (morte da filha, distanciamento da mulher), profissional
(saída da Ópera de Viena) e musical ("perdi a claridade [...] e tenho
de aprender tudo de novo", como
escreveu em carta ao regente Bruno Walter), constitui virtualmente um testamento da música tonal, às vésperas de desaparecer
num novo mundo.
São quase 80 minutos de uma
música que repassa toda a tradição por dentro, até se despedir de
si mesma no fim.
Foco
Voto de seriedade nem sempre
é garantia de transcendência. O
primeiro movimento é um monumento de meia hora de música,
incrivelmente erguido sobre um
tema mínimo (uma citação interrompida da sonata "Les Adieux",
de Beethoven). O segundo transporta essas grandezas para o
mundo natural. A Osesp mantinha suas altas dignidades, mas
parecia um pouco cansada ou fora de foco.
Então deu-se o milagre. Começou o "Rondó". Dois compassos e
o pianista Nelson Freire se aprumou na cadeira, verticalizado em
escuta. Daí para a frente, era a
grande orquestra dando o seu
melhor, o que significa também
esquecida de si, seguindo outra e
maior inteligência. Nas ironias do
terceiro movimento, Mahler provoca verdadeiros choques, na junção do que há de mais kitsch com
o que há de mais transcendental.
No último, fica só a transcendência, crescida e refletida, até que o
gigantesco romance em música se
desfaz em sussurros de ré bemol.
Nem a última nota da viola tinha terminado e a ovação já tinha
começado. A chuva de rosas, depois, foi um estranho toque carnavalesco. Mas a comoção era
contagiante e fazia pensar no que
não seria o país com 14 orquestras
assim, em 14 capitais. Mudava o
Brasil. Alguém duvida de que seria uma mudança para melhor?
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